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Apontamentos sobre a independência do Brasil na Bahia
Falar do processo de independência no Brasil não é tarefa simples. Apesar de ainda persistir uma imagem de um processo pacífico e de caráter continuador, a historiografia sobre o assunto já comprovou em diversos aspectos e diversos momentos que os acontecimentos não foram cordatos e ausentes de disputas, guerras e rupturas. Os acontecimentos que provocaram as discussões sobre o rompimento com Portugal tiveram apropriações e respostas diferentes nas diversas regiões e províncias do então reino do Brasil. Se no Rio de Janeiro abraçou-se a ideia de uma autonomia do Brasil (antes mesmo da ideia de uma ruptura definitiva com Portugal) mais rapidamente, em virtude da posição de centralidade conquistada como ex-capital do Império português e pela presença também do príncipe regente, nas províncias do Norte do Brasil (que hoje englobam também a região Nordeste), a visão de um novo país, cujo governo seria encabeçado pelo Rio de Janeiro, foi apreendida de forma diferente e não da maneira mais receptiva. Mesmo no Rio de Janeiro havia discussões e disputas sobre um possível rompimento definitivo com Portugal ou não, e como houve alas que resistiam à separação, houve também grupos que pretendiam uma ruptura mais imediata e com posições mais profundamente liberais do que o proposto pelo príncipe regente.
O processo de independência do Brasil teve, assim, desenvolvimentos diversos em cada província do território, e teve desdobramentos diferentes ao longo dos anos de 1822 e 1823. Se houve regiões onde a adesão ao governo de d. Pedro foi mais tranquila e imediata, houve províncias onde as disputas chegaram a se tornar guerras longas e sangrentas, e o processo de adesão ao governo encabeçado pelo Rio de Janeiro demorou mais de um ano até se concretizar, evidenciando que o sete de setembro foi uma data simbólica, atribuída à independência, quando houve províncias em que o processo só foi concluído definitivamente em 1823, como o caso da Bahia, que comemora a independência de fato em 2 de julho – data festiva e celebrada até os dias de hoje. O caso baiano é o que pretendemos analisar neste pequeno texto.
Não temos a intenção de reconstruir a história da província da Bahia, mas é importante mencionar dois momentos prévios aos acontecimentos da época da independência que merecem destaque: o primeiro, em 1763 a capital do vice-reinado é transferida para o Rio de Janeiro, interrompendo a centralidade econômica e política que a então capitania exercia no Estado do Brasil. Isso significa, na prática, que o Rio de Janeiro passava para a posição central na colônia, e a Bahia, apesar de capitania mais desenvolvida, passava a segundo plano. Outro momento que merece destaque é a transferência da Corte portuguesa para o Brasil e a mudança no status do Rio de Janeiro, de capital da colônia a capital do Império português, e a Bahia conservando seu lugar secundário de importância no reino, apesar do príncipe regente d. João ter assinado de lá a carta régia de abertura dos portos brasileiros às nações amigas do império. Na prática, a transmigração da capital e da corte para o Brasil fez com que as capitanias brasileiras passassem a se reportar ao Rio de Janeiro como sede do poder. O Rio de Janeiro que até pouco tempo era mais uma capitania e sede do vice-reino.
A longa permanência da família real no Brasil e do Rio de Janeiro como sede da corte significaram que as capitanias não somente se reportavam ao Rio de Janeiro como sede da metrópole, mas também para lá enviavam impostos cada vez maiores, necessários para sustentar o aparato real, o que causava incômodo e desagrado aos produtores e comerciantes locais. Em 1820, eclode a revolução liberal e constitucionalista do Porto e as Cortes são constituídas, sendo a família real convocada a retornar com toda a corte para Lisboa, levando de volta a capital do império português para sua antiga sede europeia. As Cortes propõem mudanças na relação entre Portugal e Brasil que vão ter reflexos importantes nas capitanias ao longo do território brasileiro: uma das mais significativas é a criação de juntas governativas para as novas províncias (tidas a partir de então como unidades autônomas, apesar da elevação do Brasil a reino unido em 1815), substituindo os capitães apontados pelo rei, e desmembrando o poder político do poder das armas, criando também um governador das armas. Essa medida implica na autonomização de cada província, que passa a se dirigir diretamente a Lisboa, novamente sede do império depois do retorno do rei e da corte. Na prática isso representava a perda de força da presença de d. Pedro como príncipe regente do reino do Brasil e a perda de capitalidade do Rio de Janeiro, enquanto as províncias passavam a ter a possibilidade de representar diretamente os interesses locais, em geral sufocados pelo governo central fluminense. Outras mudanças que foram propostas também ameaçavam a recolonização do Brasil, como o fechamento dos portos brasileiros às nações amigas, retornando o comércio à situação anterior à da vinda da corte para o Brasil e a volta imediata do príncipe regente d. Pedro para Portugal. [1] Essas medidas foram sentidas e significadas de maneiras bastante diferentes entre as províncias.
Tão logo souberam da eclosão de uma revolução constitucionalista na cidade do Porto e da vitória desta em Portugal, com a convocação das Cortes, algumas províncias, como Pará e Bahia, em pouco tempo aderiram ao movimento constitucional e juraram a Constituição espanhola – que ficou em vigor enquanto as Cortes preparavam a portuguesa. Em 10 de fevereiro de 1821 um levante fez a cidade de Salvador aderir ao sistema constitucional e eleger uma junta governativa composta principalmente de portugueses europeus. A adesão de uma cidade tão importante significou grande temor para o governo do Rio de Janeiro, que suspeitava que o movimento constitucionalista se espalharia por todo o norte-nordeste do Brasil a partir da Bahia. A Bahia tinha fundamental importância como liderança do Norte do Brasil – por isso era disputada por Lisboa e pelo Rio de Janeiro. Quem a conquistasse provavelmente teria superioridade entre as províncias do norte e nordeste do reino. Comandados por Manuel Pedro de Freitas Guimarães e outros, o movimento militar que apoiava as Cortes e o constitucionalismo sagrou-se vitorioso, tornou-se popular e resultou na nomeação de Guimarães como governador de armas. Ponto para Lisboa; pior para o Rio de Janeiro que virara sinônimo de despotismo a ser superado. Não custa lembrar que o juramento às Cortes não implicava em rompimento com a lealdade ao Rei – significava que a fidelidade estava mantida desde que houvesse a adoção dos princípios constitucionais. Em julho de 1821 a Bahia rompia com o Rio de Janeiro, politicamente e economicamente. Passava a caber às Cortes portuguesas a regência das províncias do Brasil e defendia-se o envio de deputados de cada província para advogarem em seu favor nas Cortes, incluindo o Rio de Janeiro, que deixava oficialmente de ser corte para ser apenas mais uma província.
Nesse contexto, ao movimento constitucionalista se opunha o governo do Rio de Janeiro, tido como despótico, símbolo do poder absoluto representado pelo rei (e depois pelo príncipe regente) em oposição às constitucionais Cortes portuguesas. E temia-se a reação deste como centro do Império. Por essa razão a Junta da Bahia pediu o envio de tropas de Portugal, para que pudessem sustentar o novo regime, uma vez que a Bahia havia rompido politicamente e economicamente com o Rio de Janeiro. As novas tropas chegaram a Salvador em agosto de 1821 e passaram a ocupar a capital da província.
Outro momento importante de inflexão para a Bahia foi o mês de fevereiro de 1822. As Cortes de Lisboa decidiram que o cargo de governador-geral das armas que era ocupado por Manuel Pedro de Freitas Guimarães seria passado para Inácio Madeira de Melo , comandante do batalhão 12 das tropas portuguesas. Madeira, e consequentemente as Cortes de Lisboa que o nomearam, enfrentaram a resistência das tropas brasileiras adeptas de Freitas Guimarães e também da câmara de Salvador que cobrava documentação da nomeação que Madeira não tinha. Nesse ponto, os interesses de grupos insatisfeitos com as medidas das Cortes (que iam desde a nomeação de um novo governador das armas até as ameaças de fechamento dos portos brasileiros) e com a ocupação de Salvador por tropas portuguesas, e dos adeptos da causa de d. Pedro tinham inimigos em comum, o que os colocava em um mesmo lado do confronto, mas ainda não os unia como aliados. Houve um episódio de enfrentamento entre adeptos de cada um que resultou na vitória de Madeira de Melo, com a ocupação dos fortes e da cidade pelas tropas portuguesas, na prisão de Freitas Guimarães e seu envio para Lisboa, e na fuga de parte das tropas brasileiras, de parcela das elites e da população de Salvador para o Recôncavo, temendo novos episódios de violência e possíveis convulsões sociais e desordem.
Mais do que o número exato de mortos ou da retirada subsequente, a confrontação decorrente da nomeação de Madeira foi ponto de ruptura entre os grupos que lutavam pelo poder provincial na Bahia. Marcou o início do conflito num dos pontos mais estratégicos do Reino do Brasil, causando a divisão entre grupos e impulsionando o gradual afunilamento das opções entre Lisboa e Rio de Janeiro.
Não foi, por outro lado, um ponto de ruptura a partir do qual a separação entre “brasileiros” e “portugueses” estava clara e definida. O que se passava na Bahia se passava também em todo o Reino, concomitantemente, o que tornava a situação ainda mais incerta. A separação ainda seguiria um caminho mais lento, confuso e incerto. Como mostra o próprio fato de que a Junta Governativa baiana, pró-Lisboa, continuava a ser composta por nascidos no Brasil. Eram interesses, políticos e econômicos, e mesmo diferenças culturais e sociais que serviam de ingredientes para o clima de conflito, separando partes de uma mesma sociedade em tendências políticas. A confrontação entre tropas tampouco constituiu uma exclusividade da Bahia. Ocorrera em Pernambuco, em período quase concomitante no Rio de Janeiro, com a mesma seriedade, e ocorreria depois em províncias como a Cisplatina, o Piauí e outras.
Os confrontos em Salvador de fevereiro de 1822 não constituem, desse modo, o momento da opção de parte das elites baianas pelo Rio de Janeiro, mas o início do movimento de aproximação de parte delas com d. Pedro. [...] Os desentendimentos no seio do liberalismo baiano opunham, em alguns casos, tendências “brasileiras” (ou seja, de cores locais, autonomistas) e “portuguesas” (mais ligadas a Lisboa), sem que isso significasse um movimento natural de apoio ao Rio de Janeiro. Não havia partidos definidos e não havia, principalmente, a imagem da “causa brasileira”, que ainda se gestava nesse mesmo período. (FRANCHINI NETO, 2019: 304-305.)
A intervenção de Lisboa a favor dos europeus adeptos de Madeira acabou gerando inconformismos em relação ao ideal de autonomia prometido à província pelas Cortes e começou a aproximar os dissidentes naturais da terra (adeptos de Freitas Guimarães) e das elites locais em fuga para o Recôncavo ao governo do Rio de Janeiro e aos apoiadores de d. Pedro , embora ainda houvesse ressalvas de adotar o governo do príncipe, o que seria equivalente a se curvar ao despotismo. Assim Madeira resumia a situação na cidade e na província da Bahia, identificando:
[...] três “partidos que existem nesta cidade”: o dos “naturais de Portugal”, que era quase todo “puramente constitucional” e contava com “naturais do país”; o dos “mais poderosos, já em posses e já em empregos de representação”, ligado “aos togados do Rio de Janeiro”, e que desejavam figurar “independentes do governo de Portugal” e, finalmente, os “que pelas suas posses ou empregos” queriam uma “independência republicana, em que só figurem os naturais do país”. ( Apud WISIAK, 2005: 460)
A presença destes grupos, e outros, em Salvador, mesmo depois da tomada da cidade pelas tropas portuguesas, suscitava debates acalorados sobre a possibilidade ou não de apoio a um governo central no Brasil e, em último caso, de adesão a um Estado independente liderado por d. Pedro . Em meados de 1822 começou a haver a aderência por parte de vilas e câmaras do interior da província ao governo de d. Pedro no Rio de Janeiro, o que provocou tentativas de invasão da região do Recôncavo pelas tropas reunidas em Salvador. Foi o estopim da guerra entre portugueses em Salvador e “brasileiros” (apoiadores do Rio de Janeiro e da causa brasileira) no Recôncavo e sertões da província. Nesse momento, d. Pedro sinalizava com a criação de uma Assembleia Constituinte no Brasil e a promessa de uma constituição , o que representava uma dissidência das Cortes portuguesas, e ao mesmo tempo sugeria que um possível governo centralizado não seria despótico. Entretanto, para alguns adeptos da independência, persistia ainda a desconfiança de um governo liderado por um português e uma possível reaproximação com Portugal no futuro.
Com os ataques de Madeira em Salvador às vilas do Recôncavo, houve a necessidade de estruturação de uma Junta na vila de Cachoeira, em oposição à da capital. Em agosto de 1822, depois do aporte de mais tropas portuguesas em Salvador, para acudir Madeira de Melo, as câmaras do Recôncavo foram chamadas pela vila de Cachoeira para constituir uma espécie de governo geral da província. Foi de lá que partiu o impulso de se criar um exército brasileiro para combater o português de Salvador. Foi em torno do governo de Cachoeira que se organizou a oposição brasileira aos ataques portugueses. Foi para lá que foram mandadas tropas de outras províncias, como de Pernambuco e Alagoas , além das vindas do Rio de Janeiro, em socorro aos apoiadores da causa brasileira . Foi de lá que se ordenou o bloqueio do porto de Salvador e o impedimento de entrada de embarcações com víveres para abastecer a cidade. Foi para lá que se dirigiu o general francês Pierre (Pedro) Labatut, com a missão de organizar e liderar o exército libertador , a mando de d. Pedro I.
A guerra de independência na Bahia compreendeu, segundo Thomas Wisiak (2005: 471) duas fases mais ou menos claras: uma primeira, entre junho e outubro de 1822, quando as ações eram exclusivamente “baianas”: tropas locais do Recôncavo apoiadoras de d. Pedro contra as tropas portuguesas e locais de Salvador, partidárias de Portugal. E uma segunda fase, entre outubro de 1822 e julho de 1823, quando os reforços do batalhão do Imperador e de outras províncias chegam para formar o exército libertador, que consegue a expulsão das tropas portuguesas e de Inácio Madeira de Melo da capital.
Embora o general Labatut tenha de fato conseguido dar um ordenamento para o exército brasileiro na Bahia, seu comando trouxe inúmeros problemas e questionamentos que culminaram com sua retirada forçada da liderança das tropas. O que nos traz a um outro aspecto decisivo e demasiado importante da guerra de independência na Bahia: a manutenção da ordem e do controle social e a preocupação com a “peste revolucionária” que ameaçava uma região com tantos escravos, libertos, pardos e homens livres e pobres .
Pouco ainda se sabe sobre a participação concreta popular nas guerras de independência, como as classes populares interpretavam e lidavam com o movimento e com as ideias em circulação. Sabe-se que boa parte dos homens livres pobres já compunham os postos mais baixos do exército e dos corpos de milícias da colônia. Com a chegada da corte no Rio de Janeiro e a vinda de muitos oficiais para o Brasil, o exército luso-brasileiro reservou para os portugueses europeus os cargos de oficiais, relegando aos brasileiros os menores postos. Durante o período de guerra, enquanto os postos mais avançados em Salvador continuavam ocupados por portugueses sob o comando de Madeira de Melo, o exército aliado ao Rio de Janeiro pode contar com brasileiros fugidos da ocupação de Salvador, mas precisava de mais números, então passou a admitir brancos pobres, libertos e, em algumas circunstâncias, até escravos. Já em 1821, quando da adesão ao movimento constitucionalista, parte das classes mais baixas da população aderiram ao movimento que clamava por constituição e liberdade. O apoio ao liberalismo português trouxe preocupações quanto ao espalhamento dessas ideias entre as camadas populares, especialmente entre negros e pardos livres. Boa parte dos soldados rasos e baixas patentes do exército que lutou contra as tropas lusitanas em Salvador era composto de pardos, negros, caboclos, indígenas, mulheres, livres e até mesmo escravos, que queriam liberdade e não se identificavam com o pertencimento português. Vale notar que muitos também não se identificavam com o governo do Rio de Janeiro, mas aderiram em nome de uma possível modificação social, o que demonstra que havia certa consciência política também entre os mais pobres que viviam aquela circunstância única na história do Brasil. Foram esses que fugiram de Salvador em direção ao Recôncavo e foram o embrião do Exército Pacificador. Foi a participação popular na guerra que acabou empurrando as elites baianas a tomar parte de vez do projeto de d. Pedro, temerosas de uma ruptura na ordem social. Temiam também que o projeto do Rio de Janeiro se traduzisse em um projeto despótico e autoritário, mas o perigo revolucionário, a “anarquia” e a ameaça de um colapso social em uma província com tantos escravos, libertos, negros livres e pobres (em estado de “fermentação social”) era maior. Os escravos falavam em liberdade naquele contexto político complexo – o que ameaçava as elites baianas. Constituição, liberalismo, liberdades eram palavras e conceitos que estavam na boca do povo, em seus vários significados. Essa foi uma das causas que levaram à derrocada de Labatut – sua insistência em incorporar homens de cor e escravos às fileiras dos soldados para lutar pela causa da independência, ameaçando a ordem social. Embora não fosse uma política ampla e de fato o general não tenha conseguido a permissão do imperador para convocar a população escrava sistematicamente, houve o caso de escravos que aderiram ao exército e depois tiveram de ser alforriados. Havia um batalhão chamado de periquitos, que era composto majoritariamente por homens de cor, livres ou libertos – e até mulheres, como Maria Quitéria – que teve destacada importância nas batalhas da independência da Bahia. Esse batalhão, que recebeu esse nome pelo penacho verde que supostamente havia em suas fardas, foi responsável por uma sublevação acontecida já depois da independência declarada, quando os comandantes do exército tentaram (e conseguiram) desmembrar e desmobilizar um batalhão tão perigoso como aquele, enviando soldados negros e pardos para diversas partes do Brasil, como para a província Cisplatina ainda em guerra, e para a Marinha. (Ver Kraay, 2006: 322-330)
Outra causa que levou à derrocada de Labatut foi o fato de ele ser estrangeiro , além dos desentendimentos que teve com a Junta da vila de Cachoeira e de sua intenção de convocar escravos para a guerra. A convocação de um estrangeiro para comandar o exército nacional incomodou os patriotas brasileiros. A rejeição aos portugueses europeus era marca da divisão que havia na sociedade baiana e da guerra de independência: em oposição aos patriotas (que aderiram à causa brasileira) estavam os portugueses europeus localizados em Salvador, adeptos do sistema constitucional das Cortes de Lisboa.
É preciso ter cuidado com o uso de termos como patriota e nacional nesta época: não há ainda sentimento de identidade nacional , não havia um sentimento forte em torno do ser brasileiro , não mais do que o sentimento patriótico, relacionado à pátria de nascimento, neste caso, às províncias. (JANCSÓ E PIMENTA, 2000) Mas não deixa de ser significativo o fato de haver uma rejeição à liderança do exército nacional estar nas mãos de um estrangeiro: quem assumiu no lugar de Labatut foi o coronel baiano Joaquim José de Lima e Silva, que ficou de maio de 1823 até o final da guerra.
Os conflitos desses anos eram como que cadinhos de formação de identidade, pois os patriotas se definiam em oposição aos portugueses. O discurso antiportuguês violento, não apenas racial no conteúdo, marcou uma identidade brasileira e baiana contra a “canalha lusitana” ou os “fardados lobos” que ocupavam Salvador. Durante esses anos, a lusofobia fincou raízes profundas na população baiana, passando a colorir a política, em especial a política liberal radical, por décadas. (KRAAY, 2006: 319)
Esse sentimento antilusitano marcou fortemente não somente a política baiana, mas a política brasileira até princípios dos anos 1830, com a abdicação de d. Pedro I em 1831 e o início do período regencial. Certo é que o 2 de julho segue sendo celebrado na Bahia até os dias de hoje como o dia da independência baiana, uma festa que reúne populares e relembra a expulsão dos portugueses depois de uma guerra sangrenta que durou mais de um ano.
Renata William Santos do Vale
Doutora em História (UFF)
Pesquisadora do Arquivo Nacional
Coeditora do sítio Temas do Brasil Oitocentista
REFERÊNCIAS
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