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Relação de passageiros da galera Camões
Fundo: Divisão de Polícia Marítima, Aérea e de Fronteiras
Código do Fundo: OL
Notação: BR RJANRIO OL.0.RPV.PRJ.0001
Data do documento: 11 de junho de 1875
Local: Rio de Janeiro
Folha: 1-1v
Veja esse documento na íntegra
O Brasil é comumente chamado de um país de imigrantes. De fato, até o século XIX tivemos um constante fluxo de imigrantes que se confundiam no papel do colonizador. Somente a partir das primeiras décadas do Oitocentos é que a imigração como um fenômeno de massa começa a aparecer nas políticas públicas brasileiras, ainda que a princípio de forma complementar ao trabalho cativo. A imigração, e o trabalho livre que essa representava, vinha como solução para a reposição de mão de obra quando se desse, enfim, o fim da escravidão. Um primeiro e importante passo foi dado com a Lei Eusébio de Queirós de 1850 (lei n. 581 de 4 de setembro) que aboliu definitivamente o tráfico negreiro – muito embora o tráfico clandestino tenha continuado por alguns anos. O problema é que, antes que os negros pudessem ser livres e conquistar terrenos, foram promulgadas leis que previam a limitação do acesso à terra a eles. Como a lei n. 514 de 28 de outubro de 1848, que estabelecia no art. 16 que: “A cada uma das províncias do império ficam concedidas no mesmo, ou em diferentes lugares de seu território, seis léguas em quadra de terras devolutas, as quais serão exclusivamente destinadas à colonização, e não poderão ser roteadas por braços escravos” (grifo meu). Ou a lei n. 601 de 18 de setembro de 1850, conhecida como Lei de Terras, que determinava que as terras devolutas não mais seriam concedidas como sesmarias, mas somente poderiam ser compradas. Essa lei visava a manutenção dos grandes latifúndios, praticamente impossibilitava que pobres livres e ex-escravizados adquirissem terras, e dificultava a formação de pequenas propriedades agrícolas, também para os imigrantes que deveriam chegar para suprir a demanda de mão de obra agrícola. Fato é que o imigrante chegado no século XIX ajudou a moldar a classe trabalhadora brasileira.
Ainda no período joanino houve a primeira iniciativa de trazer imigrantes subvencionados para criar uma colônia no Brasil, um grupo de suíços que fundou Nova Friburgo, RJ, em 1818. Durante o primeiro reinado ficava reservada ao imperador, de acordo com a Constituição de 1824, a prerrogativa de criar e implantar um projeto imigratório no Brasil, visando principalmente ocupar regiões despovoadas do território e garantir as fronteiras. O projeto previa o uso de verbas públicas para incentivar a formação de colônias no Brasil, medida que foi duramente criticada pelas novas elites brasileiras, incomodadas com o projeto de doar terras a estrangeiros às custas dos cofres públicos. O primeiro reinado foi curto e o período regencial que o seguiu não apresentou nenhuma novidade na política imigratória. Foi a partir do segundo reinado, iniciado em 1840, que houve a retomada de uma política de imigração do governo, em uma tentativa de montar uma estrutura administrativa para os negócios da imigração. É importante ressaltar que a política de imigração não vinha a atender somente uma necessidade de mão de obra que iria acabar por acontecer à medida que a escravidão fosse minguando, ela é também uma política civilizatória, de “embranquecer” e modernizar a população e o país. Imigrantes asiáticos e africanos não eram aceitos e eram verdadeiramente indesejados, apesar de estarem até mais acostumados com as más condições de trabalho enfrentadas nas fazendas de café e de outros produtos do Brasil.
Nesse ponto cabe algumas distinções importantes a serem feitas: a diferença entre imigrantes e colonos, e entre imigrantes subvencionados e espontâneos. A respeito do primeiro par, imigrantes e colonos, não há dúvidas de que todos se tratam de pessoas que emigraram de seus países de origem para um outro, mas a finalidade diverge. Os colonos eram os imigrantes que chegavam ao Brasil para formarem colônias, comunidades fechadas, constituídas de pequenas propriedades, que visavam prender os estrangeiros à terra. Os imigrantes em geral eram os recém-chegados de terras estrangeiras que vinham para trabalhar em propriedades de outrem, apenas como braços de trabalho, principalmente para substituir os braços escravos que aos poucos, muito lentamente, iam deixando de existir.
O segundo par de palavras, os imigrantes subvencionados ou espontâneos tinham muito a ver com a primeira diferença apresentada. A maior parte dos colonos vinha para o Brasil subvencionados, com passagem, hospedagem pagas, com um plano de início de vida, ainda que extremamente precário, e nem sempre bem sucedido. Entre os imigrantes que vinham para trabalhar nas fazendas de café do Sudeste, principalmente, muitos também eram subvencionados – não custa registrar que o imigrante precisava trabalhar em média 4 anos apenas para pagar sua passagem de vinda! Eram trazidos por empresas privadas, ou pelas províncias, ou ainda pelo Estado brasileiro em grandes lotes de pessoas para trabalharem sobretudo na agricultura latifundiária. Mas também havia os imigrantes que chegavam por iniciativa própria, ou os espontâneos, que não eram poucos e merecem ser considerados, entre eles, sobretudo os portugueses.
As primeiras experiências de imigração subvencionada anteriores a 1875 não foram bem sucedidas, principalmente devido às péssimas condições de vida a que eram expostos os imigrantes europeus, tratados a princípio pelos grandes proprietários de terras e escravizados como se fossem iguais aos últimos. A Alemanha chegou mesmo a proibir durante um tempo a vinda de seus habitantes para o Brasil, em vista dos maus tratos recebidos pelos imigrantes. A maior parte dos colonos instalou-se na região Sul do Brasil e também em estados do Sudeste, como o Espírito Santo.
Entre os anos de 1875 e 1889 o Brasil recebeu um grande contingente de imigrantes e colonos, que continuaram entrando no país até depois da metade do século XX. Eles viriam ser um agente civilizador e modernizador da economia e da sociedade brasileira, embranquecendo a população e trazendo novidades para o trato com a terra. Mas o plano nem sempre funcionou como o previsto. Apesar de serem, de fato, brancos, a maior parte dos estrangeiros era pobre e vinha para as novas terras com o pensamento de voltar tão logo conseguissem reunir algum pecúlio. O sonho era enriquecer na América e retornar o quanto antes para a Europa. Outro dado que merece destaque é o fato de a maior parte dos imigrantes europeus vindos para terras brasileiras ser oriunda de regiões pobres e consideradas “atrasadas” da Europa, como a região da Itália, da Espanha e de Portugal, de onde vinham estrangeiros muito pobres e pouco acostumados a lidar com as grandes culturas como a do café no Brasil. Eram pequenos produtores expulsos de suas terras principalmente pela pobreza e pela falta de recursos para produzir.
Tomemos o caso de Portugal como exemplo. Não cabe nesse curto espaço um maior aprofundamento na história de Portugal no século XIX, mas a ex-metrópole enfrentava um período de aumento populacional e de carência de terras e empregos em uma indústria nascente ainda muito tímida e nos centros urbanos. Enquanto sobrava mão de obra em Portugal, começava a faltar no Brasil, não somente em virtude do fim do tráfico e das leis do Ventre Livre e Sexagenários, mas principalmente devido ao aumento exponencial da produção de café no Sudeste brasileiro. Enquanto outros Estados europeus absorviam a mão de obra do campo nas crescentes indústrias, Portugal era incapaz de atender ao contingente de pessoas que vinham do campo. O Brasil se apresenta como solução para os que ficavam desocupados. Muitos portugueses vieram subvencionados para regiões agrícolas do Brasil, mas uma parcela muito expressiva continuava vindo espontaneamente, principalmente para o Rio de Janeiro e outras cidades. Não se pode esquecer também uma parcela, ainda difícil de mensurar, de imigrantes clandestinos, que não tinham passaporte e não entravam nas listas de passageiros das embarcações oficiais. A maior parte dos portugueses procurava ambientes urbanos onde pudessem trabalhar sobretudo no comércio e nos serviços, auxiliados pela já grande comunidade de amigos e parentes que havia no Brasil. A intenção dos portugueses era emigrar para o Brasil para enriquecer e depois retornar à pátria, com dinheiro, e se aposentar como “brasileiros”. Infelizmente não foram muitos os que conseguiram esse feito. A maioria dos que vinham para o Brasil acabou ficando por aqui mesmo.
A imigração portuguesa no Brasil, como a relação da galera Camões abaixo bem representa, era preferencialmente masculina, de muitos jovens antes dos 14 anos e depois dos 20, período que exclui o recrutamento militar, muitos já com algum parente por aqui. No início poucas famílias vinham, mas depois de 1880 aumenta inclusive a quantidade de mulheres que chegam nos portos brasileiros. A maioria prefere as cidades, e vai em busca principalmente de trabalho no comércio varejista, dominado pelos portugueses há séculos. Muitos pretendiam fazer carreira e ascender socialmente por meio de casamentos com brasileiras, e deve-se notar que as quantias enviadas por portugueses no Brasil para Portugal representavam uma expressiva fatia dos capitais do país na segunda metade do XIX. Mesmo os portugueses que vinham subvencionados para as fazendas paulistas, sobretudo, tão logo se desvencilhavam de suas dívidas, migravam para as cidades – em especial o Rio de Janeiro – para tentar uma vida melhor.
A lista que trazemos embora esteja referida como Relação de Vapor, trata-se da relação de passageiros de um barco à vela, e não à vapor, uma galera. A maior parte das embarcações portuguesas que faziam o tráfego de imigrantes ainda não era de vapores, mas de veleiros, barcos mais antigos, que não usam a nova tecnologia do século XIX. As relações de vapores eram listas com os nomes dos passageiros ou emigrantes que chegavam nos portos do Brasil, no caso deste documento, no Rio de Janeiro, feitas pelos capitães dos navios. O nível de detalhamento pode variar, algumas contendo mais informações do que outras, como a empresa que contratou os emigrantes e o destino de cada um. Essa lista é a primeira do gênero no acervo do Arquivo Nacional, e marca o início da imigração em massa recebida pelo Brasil no último quartel do Oitocentos.
Transcrição
COMPANHIA ALIANÇA MARÍTIMA PORTUENSE
Sociedade anônima – responsabilidade limitada
Toneladas => 62
Relação dos passageiros que a galera portuguesa “Camões” de 562”346 metros cúbicos, de que é capitão João Vieira Paulo conduz deste porto para o do Rio de Janeiro.
Números |
Nomes |
Idade |
Estado |
Naturalidade |
Concessão do passaporte ou guia |
observações |
|
Por que distrito |
número |
||||||
1 |
Vicente Francisco dos Santos Graça |
46 |
casado |
Póvoa do Vargim |
Porto |
1383 |
Pescador |
2 |
José filho |
16 |
solteiro |
" |
" |
" |
" |
3 |
Manoel Francisco dos Santos |
27 |
" |
" |
" |
1389 |
" |
4 |
Manoel Rodrigues da Cunha |
22 |
" |
" |
" |
1388 |
" |
5 |
José de Oliveira |
51 |
casado |
Gaia |
" |
1331 |
Trabalhador |
6 |
Pedro Dias da Rocha |
36 |
" |
Penafiel |
" |
1330 |
" |
7 |
Manoel Soares |
42 |
" |
Gaia |
" |
1332 |
" |
8 |
Carlos Rodrigues Ferreira |
24 |
[solteiro] |
Passos Ferreira |
" |
1322 |
[saralheiro] |
9 |
Francisco Ferreira |
21 |
" |
Marco de Canaveses |
" |
1192 |
Ourives |
10 |
Domingos Carvalho |
22 |
casado |
Gaia |
" |
1316 |
Canteiro |
11 |
Francisco Ferreira Rodrigues |
23 |
solteiro |
Santo [Tirso] |
" |
1191 |
Caixeiro |
12 |
Felizardo Bernardino Lopes |
44 |
Casado |
Vieira |
Braga |
484 |
Carpinteiro |
13 |
Francisco Cerqueira |
26 |
" |
Amares |
" |
421 |
Trabalhador |
14 |
João Gomes Vieira |
38 |
["] |
[Fafe] |
" |
402 |
Charuteiro |
15 |
Matilde Perpétua Araújo |
26 |
" |
" |
" |
" |
------- |
16 |
Afonso filho |
3 |
" |
" |
" |
" |
------- |
17 |
Antônio José |
13 |
solteiro |
Vila Pouca de Aguiar |
Vila Real |
414 |
Caixeiro |
18 |
Antônio [Exposto] |
27 |
" |
" |
" |
364 |
" |
19 |
Anacleto Ferreira |
53 |
viúvo |
" |
" |
433 |
Trabalhador |
20 |
Justino José |
45 |
casado |
" |
" |
415 |
" |
21 |
Luiz de Souza |
46 |
" |
" |
" |
446 |
" |
22 |
Francisco José Maio |
41 |
" |
Boticas |
" |
437 |
" |
23 |
Manoel José Vilaça |
46 |
" |
" |
" |
417 |
" |
24 |
Francisco José |
31 |
" |
Chaves |
" |
445 |
" |
25 |
Duarte Soares de Oliveira |
22 |
solteiro |
Oliveira de Azeméis |
Porto |
1109 |
Caixeiro |
26 |
Manoel Vieira |
12 |
" |
Marco de Canaveses |
" |
1374 |
" |
27 |
Antônio Moreira de Couto |
12 |
" |
" |
" |
1375 |
" |
28 |
Francisco Dionísio |
12 |
" |
" |
" |
1377 |
" |
29 |
Antônio Ferreira |
9 |
" |
" |
" |
1376 |
" |
30 |
Antônio Leite |
12 |
" |
Bouças |
" |
384 |
" |
31 |
Francisco Pinto |
38 |
" |
Resende |
" |
1154 |
Trabalhador |
32 |
Antônio Martins Pereira |
32 |
" |
Gondomar |
" |
1360 |
Canteiro |
33 |
Márcia Emília de Carvalho |
31 |
" |
Porto |
" |
1394 |
Costureira |
34 |
Alvina de Jesus |
23 |
" |
Baião |
" |
1393 |
" |
35 |
Albertina Maria |
21 |
" |
Porto |
" |
1382 |
" |
36 |
Domingos Alves |
35 |
viúvo |
Paredes |
" |
1398 |
Trabalhador |
37 |
José de Souza Oliveira |
21 |
casado |
Gaia |
" |
1414 |
Trolha |
38 |
José Antônio de Oliveira |
22 |
" |
Vila Pouca de Aguiar |
Vila Real |
464 |
Trabalhador |
39 |
Francisco Manoel da Costa |
49 |
viúvo |
Viana |
Viana |
756 |
" |
Rio de Janeiro [11] de junho de 1875
João [Vieira Paulo]
Entrado a 11 de junho 1875
Visitado a 11 de junho de 1875.
Galera portuguesa Camões
Porto 11 junho 75
Galera Camões [escrito na lateral do documento]
Referências bibliográficas
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FALCONERIS, Ana Carolina. Legislação brasileira: controle e embranquecimento do mercado de trabalho livre. Migrações em Debate. Museu da Imigração de São Paulo. 2022. https://museudaimigracao.org.br/blog/migracoes-em-debate/legislacao-brasileira-controle-e-embranquecimento-do-mercado-de-trabalho-livre
IOTTI, Luiza Horn. A política imigratória brasileira e sua legislação – 1822-1914. X Encontro Estadual de História. O Brasil no Sul: cruzando fronteiras entre o regional e o nacional. 26 a 30 de julho de 2010 – Santa Maria – RS. Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) e Centro Universitário Franciscano (UNIFRA). Anais eletrônicos. Organizadoras: Marluza Marques Harres; Ana Silvia Volpi Scott. Porto Alegre: ANPUH-RS, 2010. http://www.eeh2010.anpuh-rs.org.br/resources/anais/9/1273883716_ARQUIVO_OBRASILEAIMIGRACAO.pdf
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PASCKES, Maria Luisa Nabinger de Almeida. Notas sobre os imigrantes portugueses no Brasil (Sécs. XIX e XX). Revista História, São Paulo, n. 123-124, p. 35-70, ago./jul., 1990/1991. https://www.revistas.usp.br/revhistoria/article/view/18636/20699
SERRÃO, Joel. A emigração portuguesa para o Brasil na segunda metade do século XIX. (Esboço de problematização). Jahrbuch für Geschichte Lateinamerikas. Vol 13, n. 1, p. 84-106, dez. 1976. https://www.vr-elibrary.de/doi/10.7788/jbla-1976-0113