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Prisão de escravizados
Fundo: Série Justiça – Polícia – Escravos – Moeda Falsa – Africanos (IJ6)
Código do Fundo: AM
Notação: BR RJANRIO AM_IJ6_0214
Data do documento: 19 de fevereiro de 1850
Local: Rio de Janeiro
Folha: -
Tamanho: 20,8 cm x 32,6 cm
Veja esse documento na íntegra
Relato dos acontecimentos policiais ocorridos na freguesia do Sacramento, na cidade do Rio de Janeiro, assinado pelo chefe de Polícia da corte, Antônio Simões da Silva. As infrações indicadas no relato são crimes contra a ordem pública: desordens, capoeiragem, andar nas ruas fora do horário e embriaguez. Há uma anotação à lápis no alto da primeira página que orienta sobre o local de prisão dos escravizados presos por capoeiragem, que deveria ser o Calabouço e não o Aljube.
A freguesia do Santíssimo Sacramento foi criada em 1826 quando a freguesia de São Sebastião (a primeira da cidade, 1569) foi extinta. A freguesia do Sacramento, como era comumente chamada, ficava na região central do perímetro urbano do Rio de Janeiro e fazia limite com as freguesias da Candelária, Santa Rita, Santana, Santo Antônio e São José. O templo que dava nome à freguesia é atualmente a Igreja do Santíssimo Sacramento da Antiga Sé, erguida entre 1816 e 1820, quando foi inaugurada, ligada à Irmandade de mesmo nome.
A instituição da força policial é uma ação típica dos Estados modernos, entre os séculos XVIII e XIX. A Polícia, organizada e profissional, é criada no Brasil no período joanino, logo após a chegada da corte portuguesa no Rio de Janeiro, em 10 de maio de 1808. Não é dizer que não houvesse atividade policial no Brasil antes de 1808, mas ela não era institucionalizada nem uniformizada, e estava subordinada aos capitães generais das capitanias – havia uma vigilância simples que ficava a cargo de “guardas”, civis desarmados que faziam rondas e vigiavam atividades consideradas suspeitas. A lei penal que regia a colônia era o Livro V do Código Filipino, e em caso de convulsão ou necessidade de força armada, os juízes ou funcionários ligados à Coroa convocavam as tropas do Exército, as milícias e ordenanças.
A Intendência Geral de Polícia da Corte foi criada em 1808 inspirada em sua congênere portuguesa, criada em 1760 e comandada com mão de ferro por Diogo Inácio de Pina Manique. No Brasil, a Intendência não foi comandada com menos autoridade por Paulo Fernandes Viana, que foi o intendente durante todo o período joanino. A Polícia reprimia os crimes de roubos, furtos, desacatos, homicídios, ferimentos, leves ou graves, vadiagem, mendicância, embriaguez e jogos, controlava a população escravizada sobretudo nas cidades. A Polícia também cuidava das posturas municipais (fazia o papel de uma “prefeitura”), além de combater sedições, movimentos políticos, transgressões dos escravizados, amotinamento, planos e revoltas, e a prática da capoeira. O termo polícia era carregado de outros significados, como urbanidade e civilidade, e a Intendência era responsável pelo abastecimento de água e víveres para a cidade, pela realização de obras públicas, iluminação, sem esquecer da vigilância e da segurança pública.
Em 1809 foi criada a Guarda Real de Polícia – a força policial permanente – encabeçada por Miguel Nunes Vidigal, famoso pela repressão violenta aos escravizados, pelas perseguições e prisões sem base legal e pelos castigos públicos imputados sem passarem os suspeitos pela justiça (não somente em escravizados).
Com o retorno da corte joanina para Portugal em 1821, Paulo Fernandes Viana é destituído do cargo de intendente, e algumas medidas são implantadas em uma tentativa de melhor regulamentar a jurisdição da polícia e o emprego da justiça no Brasil. Por exemplo, cria-se a necessidade de estar em flagrante delito para executar uma prisão, castigos não podem mais ser imputados pela autoridade policial, e sim pela justiça, entre outras medidas que não duram muito, porque a criminalidade aumenta no período subsequente à implantação das mudanças. Em 1825, o novo intendente geral Francisco Alberto Teixeira de Aragão publica um edital no qual recrudesce e centraliza a ação da polícia, tornando-a mais próxima de uma instituição absolutista do que de um Estado supostamente liberal. Neste edital de 3 de janeiro de 1825, Teixeira de Aragão estabelece o toque de recolher (às 22h durante o verão e às 21h durante o inverno) para a população pobre, livre e, sobretudo, de cor, e para os escravizados. Os brancos de boa procedência estavam livres para transitarem a qualquer hora do dia. Depois do toque de recolher, qualquer pessoa dentro desses critérios se tornava suspeita e poderia ser revistada e levada pela polícia. Escravizados poderiam ser revistados e tornados suspeitos a qualquer hora do dia. Ficavam proibidos também ajuntamentos de qualquer natureza em botequins, tavernas, vendas, fosse de livres ou escravizados. No caso destes, as punições por quaisquer infrações voltavam a ser o açoitamento imediato e público (quase sempre na ordem de 100 açoites para cima).
Outra dessas medidas que visavam a regulamentar o trabalho da polícia, mas descentralizar um pouco o poder do intendente, foi a criação da figura do juiz de paz em 1827. Apoiados pelos inspetores de quarteirão, aos juízes de paz cabia: mandar separar ajuntamentos com potencial de desordem; fazer vigilância para que se mantivesse a ordem; em caso de motim, convocar a força armada para debelá-lo; mandar prender e trabalhar para corrigir bêbados, vadios, mendigos, turbulentos, meretrizes, obrigando-os a assinar termos de bem viver; providenciar a destruição de quilombos e prevenir que eles se formem; mandar fazer corpo de delito; interrogar delinquentes e testemunhas, e mandar prendê-los caso fossem culpados; fazer observar as posturas municipais, entre outras atribuições.
Os anos de 1831 e 1832 foram de intensas modificações e atividade para a polícia do jovem Império. Em 1831, com a abdicação de Pedro I, há muitas revoltas, motins e sublevações de caráter político, a cargo da polícia a pacificar, e as constantes, e cada vez mais iminentes, ameaças de revoltas escravas. Para auxiliar a conter o clima de agitação e a possibilidade de uma grande sublevação social, foi criada neste mesmo ano a Guarda Nacional, organização paramilitar que operava muitas vezes em auxílio da polícia. Ainda em 1830 foi criado o Código Criminal, e em 1832 foi aprovado o Código de Processo Criminal, que representou um grande avanço na organização da força policial, com a extinção do cargo do intendente de Polícia e a criação do cargo do Chefe de Polícia do Império. Os limites de poder do chefe de Polícia eram os juízes de paz, por um lado, e o ministro da Justiça, por outro. Ainda em 1831 a Guarda Real de Polícia foi substituída pelo Corpo de Guardas Municipais Permanentes, ou somente os “permanentes”, como eram conhecidos. (Após 1866 a guarda dos permanentes se torna o Corpo Militar de Polícia da Corte, antecessor da Polícia Militar no Brasil.) O primeiro chefe de Polícia da cidade do Rio de Janeiro, Eusébio de Queirós Mattoso Coutinho Câmara, organizou uma polícia chamada de “pedestres”, cidadãos comuns responsáveis pela vigilância nas ruas, que seria a base da futura polícia civil.
Em 1841 cada província do Império passaria a ter um chefe de polícia diretamente ligado ao presidente da província e nomeado pelo ministro da Justiça. Os chefes de Polícia, magistrados profissionais, nomeavam os delegados de cada município e os subdelegados de cada paróquia ou freguesia. No mesmo ano, as autoridades policiais assumiram poderes judiciais. Eram dotados de poderes para investigar, prender, incriminar formalmente, pronunciar sentença e encaminhar a punição. No caso dos escravizados, isso sempre valeu, desde a época da Intendência de Polícia da Corte no período joanino: os guardas apreendiam os “delinquentes” e aplicavam as punições em forma de açoites no mesmo momento, em lugares públicos. A partir de 1842 o sistema policial e judicial do Império iniciou um período de relativa maturidade.
O Aljube era uma das prisões do Rio de Janeiro entre os séculos XVIII e XIX. A etimologia da palavra “aljube” vem do árabe (al-jubb) que queria dizer poço ou cisterna. Remete a um lugar úmido, escuro, como era a cadeia da cidade do Rio de Janeiro.
Localizado na antiga rua do Aljube, atual rua Acre, foi instituída entre os anos de 1732 e 1735 pelo bispo d. Frei Antônio de Guadalupe para ser exclusivamente uma prisão eclesiástica (os criminosos comuns eram levados principalmente para a Cadeia Velha, no Largo do Paço – atual Praça XV). Com a chegada da corte joanina, o prédio da Cadeia Velha foi desocupado e modificado para receber parte da comitiva real. Deste modo, a prisão oficial mudou-se para o Aljube, que passou a ser a cadeia da Relação, e a receber criminosos comuns – os eclesiásticos ainda tinham uma cela exclusiva. Muitos delinquentes também eram enviados para as cadeias dos fortes da cidade, como o da Lage, de Santa Bárbara, de São João, entre outros, além do Arsenal de Marinha. É preciso salientar que embora recebesse vez ou outra escravizados, o Aljube era uma prisão para homens e mulheres livres. Os escravizados deveriam ser remetidos ao Calabouço, como está escrito à lápis no documento em questão.
Construída ao pé do morro da Conceição, a prisão tinha uma parte construída contra a parede de pedra e uma parte subterrânea. Em inspeção em 1833, Eusébio de Queirós, então chefe de Polícia, depois de uma visita, assim descreve as condições da prisão:
A cadeia do Aljube situada na baixa de uma montanha e por consequência mal arejada contém dentro de diversas prisões pouco espaçosas perto de 400 pessoas amontoadas, a maior parte delas sendo de baixa condição, conservam sobre o corpo pouca roupa, e essa sumamente suja. As paredes quase sem cal se acham em um estado verdadeiramente nojento, o pavimento pela muita lama que é coberto mais parece habitação de animais imundos do que de homens. Os canos para esgoto das águas por mal construídos conservam-nas longo tempo empoçados, o que produz exalações insuportáveis. Todas estas coisas reunidas fazem que se respire na cadeia um ar tão impuro e corrompido que se pode considerar como verdadeiro foco de moléstias contagiosas.
A prisão das mulheres principalmente, em que além de todas estas causas concorre a de ser sumamente pequena, faz horror. (Apud HOLLOWAY, Thomas. Versão manuscrita de O Calabouço e o Aljube do Rio de Janeiro do século XIX. Publicado em MAIA, Clarissa Nunes et alii (orgs.) História das prisões no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Rocco, 2009, vol. 1, p. 20.)
A prisão era pequena, com chão e paredes de pedra, úmida, escura, pouco ventilada, lotada, os excrementos ficavam presos nas celas em valas, o que provocava um cheiro insuportável e tinha péssimas condições de higiene e salubridade. Os presos, vestidos em trapos imundos, eram constantemente vítimas de moléstias e epidemias, além de frequentemente esquecidos na prisão, muitos sem julgamento. Como o chefe de Polícia concluiu: “o Aljube é vergonhoso monumento de barbaridade”, que não se encaixava no suposto grau de civilização no qual vivia o Império, ou pelo menos, que se queria enquadrar.
O Aljube foi desativado em 1856, quando os presos restantes foram transferidos definitivamente para a Casa de Correção. O lugar depois chegou a se transformar em um dos muitos cortiços na cidade, e foi, finalmente, demolido em 1906.
Calabouço é um tipo de prisão escura, úmida, subterrânea, uma masmorra. O Calabouço no Rio de Janeiro era uma prisão exclusivamente para escravizados detidos para punição disciplinar ou para escravizados fugidos apreendidos. Era uma casa pública, situada no que se chamava Ponta do Calabouço (hoje área do aeroporto Santos Dumont), aos pés do morro do Castelo, próximo ao hospital da Santa Casa de Misericórdia, no mesmo complexo do Arsenal do Exército (onde hoje funciona o Museu Histórico Nacional). Ela foi criada pelo alvará régio de 16 de novembro de 1693, que determinou a construção de um local para a punição de escravizados.
A maioria dos escravizados que chegavam ao Calabouço era mandada para lá por seus senhores para serem “corrigidos” com açoites. Os donos pagavam ao Estado para que esse aplicasse as penas pelos delitos cometidos, 160 réis custava uma centena de chibatadas, além do custo de 40 réis ao dia pela subsistência do delinquente. O Arquivo Nacional guarda em seu acervo o macabro códice 385, que registrava os números de açoites e os valores dos pagamentos operados no Calabouço (fundo Polícia da Corte). Nele é possível perceber que a maior parte dos escravizados recebia 200 açoites; um número menor, mas ainda significativo recebia 300 e apenas uma pequena parcela dos escravizados recebia 100 açoites ou menos. Os castigos não eram somente um serviço prestado pelo Estado, era esse trabalhando pela manutenção do sistema escravista. Os algozes eram, em geral, prisioneiros condenados por crimes comuns ou mesmo outros escravizados.
Em um contexto mais amplo, sendo a escravidão tão difusa no Rio do início do século XIX e tão central para as relações econômicas e a estrutura de classes da sociedade brasileira, o serviço de açoite significava a manutenção do sistema. Ele põe em relevo, de maneira rude, o Estado enquanto instrumento da classe dominante, atendendo a sua necessidade de controlar, por meio da coerção e violência física, os que forneciam a potência muscular de que dependia toda a economia. (Idem, p. 3)
Além dos escravizados que necessitavam de punição por delitos cometidos, contra a pessoa, a propriedade ou a ordem pública, o Calabouço recebia também escravizados fugidos recapturados. Esses eram conservados na prisão até que seus senhores viessem retirá-los, o que nem sempre acontecia rapidamente. Escravizados envolvidos em processos de inventário e espólio também ficavam no Calabouço enquanto esperavam a decisão da justiça, bem como escravizados vendidos à espera de seus novos donos.
As condições de higiene e salubridade eram péssimas, tais quais as outras prisões no Rio de Janeiro. As celas eram quentes, fétidas, úmidas, sem ventilação; eram muito propícias às moléstias e epidemias que assolavam sazonalmente a cidade. Pouca e ruim também era a comida fornecida aos detentos.
Um problema recorrente no Calabouço era o abandono de seus escravizados pelos senhores: quando os gastos com comida e punição ultrapassavam o valor de venda dos escravizados, os senhores simplesmente os abandonavam lá. Vez ou outra o Estado promovia leilões de escravizados que permaneciam anos esquecidos ou deixados na prisão, para recuperar parte de seus prejuízos com a manutenção daqueles e para liberar mais espaço nas celas para receber novos detentos.
Em outubro de 1831, o padre Diogo Antônio Feijó, então ministro da Justiça do Império, que promovera modificações e inovações para a autoridade policial, decidiu que os chicoteamentos não poderia exceder o número de 50 por dia, e 200 no total da pena. Outro problema é que muitos senhores aplicavam as penas dos delitos por conta própria, pois estavam castigando e corrigindo suas propriedades, e não aceitavam a ingerência do estado em sua propriedade privada. Para Feijó, todos os homens, livres ou escravizados, deveriam ser submetidos à lei, de maneira desigual, é claro, mas todos deveriam estar sujeitos às punições devidas. Eram tênues as fronteiras entre a autoridade pública (do Estado) e a privada (dos senhores) em relação aos escravizados.
Em 1837 o Calabouço do morro do Castelo foi esvaziado de vez e passou a ocupar uma ala da Casa de Correção – aparentemente com o intuito de melhorar as terríveis condições de higiene e para poder contar com o melhor uso da mão de obra escravizada nas obras públicas do Estado, como aterramento de mangues, construção de diques e de estradas. A própria Casa de Correção foi parcialmente construída com a mão de obra de escravizados que cumpriam penas no Calabouço. Com a transferência do Calabouço para a Casa de Correção, os castigos físicos impostos aos escravizados também deixavam de ser públicos para serem executados em sessões privadas de punição, assistidos somente pelos interessados nos casos.
Outra categoria que também passou a ocupar o Calabouço, embora não fosse considerada por lei como escravizados, eram os africanos livres que chegaram ao Brasil contrabandeados depois da proibição formal do tráfico atlântico. Ao chegarem aqui, lhes era reconhecida a liberdade, mas eram compulsoriamente conduzidos ao trabalho nas obras públicas do governo ou para o trabalho nas casas de particulares, sem remuneração, em troca de pagarem com trabalho as despesas que tinham e as passagens que os levariam de volta à África (o que raramente ocorreu). Na prática, eram esfolados, junto com os outros negros escravizados, nos trabalhos físicos muito pesados a que eram submetidos diariamente.
Com o passar do tempo, com o declínio demográfico da escravidão (já nas últimas décadas do século XIX), com a ascensão do movimento abolicionista, entre outros fatores, as penas de açoites começaram a diminuir lentamente e vigorar mais as penas de detenção com ou sem trabalho forçado. Cada vez mais o Calabouço passou a ser visto como um “anacronismo” no país, uma “instituição colonial” que persistia em um novo mundo guiado pela civilização, como deveria ser o caso do império brasileiro. O fechamento definitivo do Calabouço deu-se em 1874, e todos os presos foram transferidos para a Casa de Correção.
A capoeiragem foi um fenômeno surgido entre fins do século XVIII e início do XIX. Combinação de dança e luta, era uma prática cultural de escravizados (inicialmente), principalmente nas cidades do Rio de Janeiro, Salvador e Recife. Composta de golpes de pernas e cabeçadas, usavam também objetos cortantes, como navalhas, facas de ponta, canivetes e sovelas, para ferir ou mesmo matar seus oponentes. A capoeira surgiu da combinação de ritos e rituais, danças e lutas, de diversas partes da África Centro-Ocidental, que chegaram com os milhares de africanos traficados, que se fundiram com práticas e costumes locais de escravizados e libertos nascidos no Brasil, em formação complexa. Era mais do que uma forma de luta ou dança ou forma de resistência contra a escravidão no ambiente urbano, sobretudo; a capoeira era uma forma de identidade dentro de grupos e válvula de escape contra a rotina extenuante da escravidão. Organizavam-se em maltas e lutavam entre si em busca de conquistar territórios distribuídos pelo espaço urbano da cidade. As maltas usavam fitas de cores diferentes para distinguirem-se, bem como assobios para identificarem os grupos e tambores em atividades lúdicas.
Antes de se tornar uma forma de expressão cultural brasileira, a capoeira sofreu com o estigma do crime, embora não fosse citada oficialmente no Código Criminal do Império ou nas Ordenações Filipinas (código de leis que vigorou ao longo do período colonial e parte do imperial). Os capoeiras eram condenados por ofensas físicas, desordem e porte de armas. A capoeiragem era considerada uma ameaça tanto à ordem pública quando à ordem privada, sendo um problema de polícia e também de autoridade senhorial. A polícia, sobretudo depois da Independência, travou uma verdadeira guerra contra os capoeiras e as maltas na cidade, que eram um dos principais problemas de segurança pública no Império, bem como as desordens públicas, os jogos ilegais, a vadiagem e os ajuntamentos ilícitos. Todos problemas ligados aos escravizados que trabalhavam e circulavam pela cidade, evidenciando o medo constante de um colapso social vivenciado pela classe senhorial.
Os escravizados envolvidos em capoeiragem eram enviados para o Calabouço e recebiam punições e castigos bastante severos e violentos em comparação com os presos por outros crimes comuns: açoites (quase sempre acima de 300 e em público), uso de grilhões, correntes, torturas e prisões com trabalho forçado nas obras públicas do Estado. Havia na polícia e no governo muitos defensores de punições cruéis e indiscriminadas para os capoeiras (e mesmo livres e libertos envolvidos com a capoeiragem). As punições eram frequentemente aplicadas pelos próprios policiais, no ato de prisão, os escravizados não passavam por audiências ou juízes, e as prisões não careciam de provas, bastando mesmo que fossem considerados “suspeitos”.
Diversas medidas foram tomadas com o intuito de impedir a capoeira e as desordens de escravizados, homens livres pobres, especialmente os vadios: proibição de reuniões e ajuntamentos, toque de recolher instituído pelo intendente Teixeira de Aragão, patrulhamento de largos e praças (locais preferidos para a reunião das maltas), prisão e revista para quem circulasse à noite e fora de hora (escravizados poderiam ser coagidos a qualquer hora do dia), vigia e controle de botequins e tavernas, locais de ajuntamento de escravizados e desocupados.
Os anos de 1845-1850 (data do documento em questão) foram intensos na capoeira e também na repressão do Estado. No período conhecido como Conciliação, já controladas as revoltas de cunho separatista, a polícia pôde aperfeiçoar a repressão sobre os capoeiras. Coincidia também com o fim definitivo do tráfico atlântico de escravizados, e a capoeira ia deixando de ser mais “africana” para ficar mais “crioula”.
Os anos que seguem 1850 passaram por uma relativa calma, até a Guerra do Paraguai, que teve a participação ativa de jovens capoeiras (no 31º Batalhão de Voluntários da Pátria do Rio de Janeiro e no Batalhão de Zuavos da Bahia e Pernambuco). A guerra criou uma lenda, e os capoeiras, depois de 1870 retornam às províncias de origem não como criminosos, mas como heróis da pátria, o que colocava a polícia em situação muito delicada sobre como lidar com as maltas que voltavam à ativa. É nesse contexto também que capoeiras e suas maltas passam a atuar como capangas de políticos importantes do Império, sobretudo os do partido Conservador, e têm um papel bastante relevante em momentos críticos, como as sempre violentas eleições no Império, por exemplo.
Nesse período começou uma organização dos capoeiras em dois grandes grupos, Guaiamús e Nagoas, o último mais identificado com os nascidos na África e o primeiro mais identificado com os nascidos no Brasil e descendentes de indígenas. É nessa época também, com a maior chegada e presença de imigrantes brancos e pobres na cidade, principalmente portugueses, que brancos começam a participar da capoeiragem e dessas grandes maltas. A partir da República, a capoeira entra como crime no novo código penal e se torna a principal inimiga pública da Polícia.
Transcrição
[símbolo]
Parte do dia 19 de fevereiro de 1850
[escrito à lápis]
Ao [ilegível] chefe de Polícia escrevo [n] dizendo que desta parte consta a prisão de escravos por capoeiras no Aljube quando a prisão própria é o Calabouço – e que o número de presos aumenta e é necessário ter sobre este objeto o maior cuidado para evitar que ali estejam presos de outras prisões 18-19/2/50.
Arquivo.
[escrito de lado]
Existe na cadeia do Aljube 168 presos inclusive 12 na enfermaria
Na Freguesia do Sacramento foram presos à ordem do respectivo subdelegado os escravos João Cabinda, e José Mina, este por desordem, e aquele por capoeira, Francisco José de Freitas, Manoel Francisco Peixoto Guimarães, Joaquim d’Oliveira Bastos, José da Silva Oliveira Guimarães, Inácio José Martins, Albino de Oliveira Mendes, Antonio Moreira Dias, Joaquim Pinto, Valetim José d’Oliveira, e o escravo, Custódio crioulo, por andarem fora de horas fazendo barulhos, e embriagados.
Da parte do Corpo de Permanentes, consta terem sido presos à ordem do subdelegado do Engenho Velho, Antonio Corrêa, e Inácio Francisco.
Secretaria da Polícia da Corte em 19 de fevereiro de 1850.
Antonio Simões da Silva
Chefe da Polícia