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Febre amarela no Rio de Janeiro
Acervo Biblioteca Maria Beatriz Nascimento
Título do periódico: O Mosquito: jornal caricato e crítico
Notação: J350 (ano 8, n. 364)
Data do documento: 10 de maio de 1876
Local: Rio de Janeiro
Folha: 1
Tamanho do original: 31,8 x 22 cm
Veja esse documento na íntegra
Capa do jornal satírico O Mosquito, de 1876, que trazia uma grande ilustração de primeira página sobre o surto de febre amarela sofrido pela cidade do Rio de Janeiro naquele ano. A capa mostrava o cotidiano da cidade nas ruas alagadas, provavelmente pelas chuvas, que favoreciam o alastramento da doença, que hoje se sabe, é transmitida pelo mosquito aedes aegypti, que se reproduz em águas paradas.
O Rio de Janeiro do século XIX, bem como do período colonial, era uma cidade considerada insalubre. Cercada de morros, alagadiços, pântanos, mangues, lagoas, rios, com muitas ruas estreitas, nem todas com calçamento, sujas, onde eram despejados dejetos, onde havia água parada e lama, era muito favorável ao desenvolvimento de epidemias de diversas doenças, o que era um grande problema de saúde pública para a capital do Império.
Embora as “febres” fossem presença constante pelo país e pela capital, a primeira grande epidemia de febre amarela (ou o “vômito preto”) aconteceu na cidade entre os anos de 1849 e 1850 e atingiu aproximadamente um terço da população, ceifando a vida de 4.160 pessoas, embora esse número pareça subestimado. A Junta Central de Higiene Pública foi criada em 1850 para tentar organizar o combate à doença e a contenção da contaminação e das mortes. Médicos e higienistas dedicaram-se a tentar explicar as causas da epidemia, e dividiam-se entre contagionistas e infeccionistas na tentativa de determinar as formas de contágio. Os primeiros, acreditavam que a doença se transmitia de pessoa para pessoa, por meio de contato, troca de fluidos e objetos. Nesse caso, medidas de quarentena e separação dos doentes dos sadios seriam necessárias para conter o avanço da febre. Os segundos acreditavam que os vapores emanados de águas paradas, material orgânico em putrefação, sujeiras, dejetos, seriam carregados de miasmas (como se fossem um veneno), que contaminaria a população e a faria adoecer. A constatação de que a febre era causada por um vírus e transmitida por um mosquito veio muito depois, já no final do século XIX e no início do XX, quando a doença foi, enfim, controlada na cidade do Rio de Janeiro.
As duas teses informavam o combate feito à doença ao mesmo tempo. A Academia Imperial de Medicina estabeleceu regras higiênicas preventivas para evitar a propagação da doença. Ao passo que navios repletos de estrangeiros chegados aos portos brasileiros deveriam passar por um período de quarentena, que doentes eram isolados em hospitais afastados do Centro da cidade, iniciou-se uma grande campanha pelo asseamento e saneamento da cidade. Apoiados pelos higienistas e pelos infeccionistas, principalmente, o combate à sujeira nas ruas, aos pântanos, praias imundas, e o combate sobretudo às moradias coletivas populares, conhecidas como cortiços, deu-se com grande força, sobretudo depois da década de 1870, quanto a cidade sofreu mais dois grandes surtos de febre amarela (1873 e 1876) – o de 1876 levou, em números oficiais, 3476 pessoas. Os cortiços tornaram-se grandes inimigos da Junta de Higiene, que pretendia levar a população pobre (brancos e negros, livres, libertos e escravizados, imigrantes) para as periferias da cidade.
Se na grande epidemia de 1850, todos foram igualmente afetados, brancos e negros, livres e escravizados, pobres e ricos, e a “culpa” da epidemia recaiu, principalmente, sobre o tráfico de africanos, que apesar de proibido ainda continuava, na década de 1870, essa responsabilidade de trazer a febre de fora para dentro veio com os imigrantes, sobretudo os mais pobres, portugueses, espanhóis e italianos. O fato de a grande maioria deles, que acabava indo morar nos insalubres cortiços e habitações coletivas, ficar doente da febre amarela tão logo chegavam no Brasil pelo porto do Rio, apenas corroborava a teoria, muito embora a febre já fosse uma doença endêmica nessa época. Nos surtos da década de 1870 os africanos e afro-brasileiros já eram considerados bastante resistentes à doença, o que ameaçava o sucesso do plano de imigração europeia implementado pelas elites senhoriais para substituição da mão de obra escravizada, ao vitimar principalmente os imigrantes brancos recém-chegados ao país. A febre amarela precisava ser combatida com urgência, visto que atrapalhava o plano de “progresso” do país, de embranquecimento da população com a substituição dos escravizados negros por brancos imigrantes. Não é à toa que os graves e frequentes surtos de cólera morbus, que atingiam principalmente a população negra da cidade, não eram combatidos com a mesma diligência do que a febre amarela.
A ilustração da capa do jornal foi feita pelo artista português Rafael Bordallo Pinheiro (1846-1905) que foi caricaturista, ilustrador, desenhista, jornalista, ceramista, e entre outras atividades. Nascido em uma família de artistas, Bordallo frequentou a Escola de Artes Dramáticas, a Academia de Belas Artes e o curso superior de Letras, mas foi na caricatura e no desenho que se destacou. Em Portugal lançou diversas publicações, entre as mais conhecidas, O Binóculo (1870) e A Lanterna Mágica (1875), dois periódicos críticos ilustrados por ele próprio; em 1872 lançou o Álbum de caricaturas: frases e anedotas da língua portuguesa e os Apontamentos de Raphael Bordallo Pinheiro sobre a Picaresca Viagem do Imperador de Rasilb pela Europa, livro que comentava e ilustrava satiricamente a viagem de d. Pedro II pela Europa em 1871. Bordallo teve grande importância para o desenvolvimento e aprimoramento da caricatura em Portugal, foi ele, inclusive, que criou o personagem Zé Povinho, que ficou muito conhecido na imprensa portuguesa como representação do povo pobre.
Bordallo Pinheiro veio para o Brasil em 1875 para ilustrar o periódico O Mosquito (1869-1877), que antes contava com Ângelo Agostini como principal caricaturista. Em terras brasileiras fundou também os periódicos O Psit!!! (que durou alguns meses de 1877) e O Besouro (1878-1879), que foi encerrado com seu retorno a Portugal. Viveu em uma época de grande turbulência econômica e política em Portugal, o que serviu de fonte de inspiração para suas críticas ácidas e divertidas caricaturas. Teve grande independência, liberdade de pensamento e expressão, apesar de mexer com os poderosos, ridicularizando-os nas páginas de seus periódicos. Aparentemente, essa foi a principal razão que o levou de volta a Portugal depois de sua passagem rápida pelo Brasil – incomodou homens poderosos que o ameaçaram.
Nos anos de 1870, os periódicos ilustrados eram sinônimo de crítica ao cotidiano cultural, social e principalmente político no Brasil, nos quais a caricatura era forte meio de expressão. É nessa época também que os periódicos brasileiros começam a ser mais críticos do governo imperial, diferentemente de anos anteriores, quando boa parte da imprensa era alinhada e andava em sintonia com a Coroa e o governo. O próprio Imperador vira um dos alvos prediletos da pena dos caricaturistas, e o republicanismo começa a aparecer como alternativa ao império.
O Mosquito foi fundado por Cândido Aragonês de Faria, lançado em 19 de setembro de 1869 e tinha por subtítulo: jornal caricato e crítico (os subtítulos acabaram em 1872). O periódico era voltado para as críticas de costumes, críticas sobre temas sociais, culturais, mas, sobretudo, para os assuntos políticos, com muita acidez, mas muito humor. Tinha uma postura independente dos governos e pode ser considerado um periódico de postura anticlerical: cobrava decisões de d. Pedro II, exaltava liberais e maçons, como Saldanha Marinho, e atacava figuras religiosas. O último número foi publicado em 24 de maio de 1877 e o periódico encerrou suas atividades sem dar explicações ao público. Teve grande sucesso e alcance durante o período em que Bordallo Pinheiro esteve à frente das ilustrações, embora contasse com a pena de outros artistas também.