Notícias
Privilégios Industriais (PI)
A proteção à introdução de novas técnicas, concedida por soberanos ou senhores feudais a criadores de inventos com o intuito de salvaguardar a criação intelectual por um período determinado, pode ser retraçada, no Ocidente, à Idade Média (SCUDELER, 2006). Para melhor esclarecer a relevância dessa proteção, que traz impactos diretos ao desenvolvimento tecnológico de um país, o mesmo autor argumenta que a propriedade industrial “[c]ompreende a proteção de patentes, segredos industriais, know-how , desenhos industriais, marcas, nomes de domínio, indicações de procedência e geográficas, além da repressão à concorrência desleal.” (SCUDELER, 2006, p. 4, grifo do autor). Da mesma forma salienta que esses direitos, integrantes da propriedade intelectual, correspondem à “[...] faculdade de explorar as vantagens econômicas que a criação possa oferecer [...]” e ao direito moral que “[...] decorre da prerrogativa personalíssima de ser reconhecido, eternamente, como autor intelectual da obra.” (SCUDELER, p. 3).
No Brasil, durante o período do Império, a Constituição de 1824 assegurou, em seu artigo 179, inciso XXVI, que “[o]s inventores terão a propriedade das suas descobertas, ou das suas produções. A Lei lhes assegurará um privilégio exclusivo temporário, ou lhes remunerará em ressarcimento da perda, que hajam de sofrer pela vulgarização.” O artigo foi regulamentado pela primeira lei de patentes brasileira, promulgada em 28 de agosto de 1830 e vigente até 1882, tornando o Brasil um dos primeiros países a conceder patentes a inventores (CABELLO; PÓVOA, 2016, p. 888). A lei concedia “[...] privilégio ao que descobrir, inventar ou melhorar uma indústria útil e um prêmio ao que introduzir uma indústria estrangeira [...]” e estabelecia que o descobridor ou inventor deveria mostrar “[...] por escrito que a indústria, a que se refere, é da sua própria invenção, ou descoberta”, assim como depositar “[...] no Arquivo Público uma exata e fiel exposição dos meios e processos, de que se serviu, com planos, desenhos ou modelos, que os esclareça [...]”.
Nas três primeiras décadas de vigência da Lei de 28 de agosto de 1830, a concessão de patentes não foi muito expressiva. É a partir da década de 1870 que este cenário sofre uma inflexão fortemente condicionada pela estrutura social e econômica da época. Os pedidos de patentes se avolumam em razão do início do processo de industrialização do país e da relevância adquirida pela produção de café (CABELLO; PÓVOA, 2016). A questão do trabalho escravo também exerceu influência importante, com as lentas mas crescentes restrições ao seu emprego. Essas restrições, embora adiassem o fim da escravidão, ainda assim abalavam o cerne em torno do qual a acumulação se organizava e geravam demanda por tecnologias poupadoras de mão de obra. Malavota acrescenta alguns elementos à reflexão ao indicar que, na segunda metade do século XIX,
[...] a economia brasileira se submeteu a transformações significativas. A expansão capitalista proporcionou a espaços periféricos como o Brasil não apenas maior acesso a bens e serviços oriundos dos países centrais, como também a capitais e a novas tecnologias. A expansão da malha ferroviária, o desenvolvimento urbano, a elevação dos investimentos externos, além do avanço das atividades manufatureiras – a despeito do absoluto primado da agroexportação – são marcas indeléveis do período. (2020, p. 25).
Cabello e Póvoa chamam a atenção para o fato de que pelo menos um terço dos registros estava relacionado “[...] ao complexo agroexportador (agricultura e transporte de cargas)” (2016, p. 899). Os autores, ambos economistas, analisaram 783 privilégios industriais concedidos entre 1830 e 1882, durante a vigência da primeira lei de patentes brasileira. Detectaram que 78,9% eram novas invenções, 8,9% referiam-se a melhoramentos para descobertas ou invenções com privilégios já concedidos e 12,1% eram invenções estrangeiras.
Malavota (2020, p. 26) identificou três diferentes grupos de patenteadores: “[...] inventores e empresas estrangeiras, que desenvolviam novos bens e equipamentos em seus países de origem e pouco a pouco se aventuravam fora de suas fronteiras, vislumbrando no Brasil um mercado em crescimento”; “[...] produtores estabelecidos no Brasil, nacionais ou estrangeiros aqui radicados” e “[...] inventores eventuais ou diletantes, geralmente comerciantes, fabricantes e artífices de pequeno porte – ou mesmo simples curiosos – que no cotidiano de suas atividades desenvolviam objetos com baixo grau de complexidade, conferindo melhoria funcional a outros já existentes.”.
A partir de 1870, o Brasil passa a conceder patentes também a estrangeiros não residentes no país, como é o caso de Thomas Alva Edison e Alexander Graham Bell (RAINHO, 1996, p. 321), e em 1882 uma nova lei de patentes é elaborada [1] . O contexto é o das reuniões preparatórias para a Convenção da União de Paris pela Proteção da Propriedade Industrial (CUP), a qual resultou em um relatório final aprovado em 20 de março de 1883 e do qual o Brasil é um dos signatários juntamente com outros onze países. A Convenção de Paris reconheceu a questão da proteção à propriedade industrial como sendo de importância global e princípios fundamentais nela estabelecidos foram incorporados à nova legislação brasileira.
O fundo Privilégios Industriais, custodiado pelo Arquivo Nacional, é formado justamente pelos pedidos de patentes produzidos para cumprir essas exigências legais. Possui 9.301 registros e é constituído por relatórios que solicitam a concessão de patentes para inventos e processos, acompanhados de desenhos, fotografias e amostras, compreendidos entre os anos de 1873 e 1910. No recorte temporal de interesse para o sítio eletrônico Temas do Brasil Oitocentista encontram-se pedidos de patentes como o de banheiros flutuantes, datado de 23 de dezembro de 1876, apresentado por José Matoso Duque Estrada da Câmara [2] ; o do ventilador para dormitórios, salas etc ., de 5 de março de 1883, de autoria de Américo Cincinato Lopes [3] ; e o do Balão Brasil: aeróstato e propulsor [4] , de 22 de junho de 1873, de autoria de José Passos de Faria e cujo desenho ilustra o início desta matéria.
A maioria das patentes foi registrada no Rio de Janeiro, mas procuradores como Jules Géraud e Leclerc se encarregavam de buscar obter os registros de inventos produzidos em outras províncias e países. Encontram-se entre os pedidos de patentes submetidos por estrangeiros não residentes no Brasil o de Pedro Sodal, de Cienfuegos, Cuba, para aperfeiçoamento em fornalhas e aparelhos destinados a queimar bagaço de cana-de-açúcar, datado de 27 de outubro de 1887 [5] , e o de Thomas Alva Edison, de Nova Jersey, Estados Unidos, datado de 22 de novembro de 1878, em que solicita patente para melhoramento no método e nos meios para o desenvolvimento de correntes elétricas [6] . Edison encaminhou seis patentes para registro, como a de 26 de julho de 1888, em conjunto com George Edward Gourand, relativa a aperfeiçoamento em fonógrafos e fonogramas [7] ou a de 4 de abril de 1883 em que solicita patente de aperfeiçoamento em receptores telegráficos e telefônicos [8] .
A historiadora Maria do Carmo Rainho, pesquisadora do Arquivo Nacional, registra que o fundo Privilégios Industriais contém “[...] cerca de 22 mil desenhos e 619 amostras. Estas são peças (protótipos) feitas de materiais diversos como madeira, metal, papel, tecido, cerâmica, cera, parafina, vegetais e vidros, entre outros.” (1996, p. 319). A autora destaca a concentração de pedidos de privilégios industriais para o setor agrícola e que os demais pedidos se referem às indústrias e a áreas como medicina, higiene, saúde e “[...] artes gráficas, embalagens, alimentação, vestuário, artigos de toucador, mobiliário, materiais de construção, propaganda, iluminação, utensílios domésticos, decoração, jogos recreativos e educativos.” (RAINHO, 1996, p. 320).
Conforme assinalam Cabello e Póvoa (2016, p. 893)
As patentes históricas constituem uma valiosa fonte de informação para o estudo de diversos aspectos ligados à atividade inventiva durante quase todo o período imperial. Além dos aspectos econômicos, os dados das patentes de invenção do período permitem avaliar as tendências relativas à urbanização, introdução de novas tecnologias de comunicação e transporte, tecnologias poupadoras de mão de obra, entre outros.
Os documentos do fundo vêm sendo estudados por pesquisadores das áreas da História (RAINHO, 1996; RIBEIRO, 2006; MARINHO, 2017; MALAVOTA, 2020), Economia (CABELLO; PÓVOA, 2016) e Direito (SCUDELER, 2006) e, devido a sua originalidade e diversidade, têm potencial de emprego em novas pesquisas oriundas dos mais diferentes campos de conhecimento.
[1] Lei n. 3.129, de 14 de outubro de 1882. Colocar link para Casa Civil
[2] BR AN, RIO PI 6907
[3] BR AN, RIO PI 37
[4] BR AN, RIO PI 6921
[5] BR AN, RIO PI 9093
[6] BR AN, RIO PI 24
[7] BR AN, RIO PI 5979
[8] BR AN, RIO PI 39
Referências
CABELLO, Andrea Felippe; PÓVOA, Luciano Martins Costa. Análise econômica da primeira Lei de Patentes brasileira. Estudos Econômicos , São Paulo, v. 46, n. 4, p. 879-907, 2016. Disponível em https://www.revistas.usp.br/ee/article/view/88807 .
MALAVOTA, Leandro Miranda. A Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional e as patentes de invenção: tecnologia e propriedade no Império do Brasil. Revista Maracanan , Rio de janeiro, n. 23, p. 12-33, 2020. Disponível em https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/maracanan/article/view/45211/32004 .
MARINHO, Amanda Gonçalves. A invenção como parte do processo de industrialização: patentes inglesas no Brasil (1882-1910). In : CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA ECONÔMICA, 12. e CONFERÊNCIA INTERNACIONAL DE HISTÓRIA DE EMPRESAS, 13., 2017, Niterói. Anais [...]. Niterói: Universidade Federal Fluminense/Associação Brasileira de Pesquisadores em História Econômica, 2017. Disponível em: https://www.abphe.org.br/congresso/xii-congresso-niteroi?pagename=Textos%20Completos
RAINHO, Maria do Carmo Teixeira. A inventiva brasileira na virada do século XIX para o XX: Coleção Privilégios Industriais do Arquivo Nacional. História, Ciências, Saúde – Manguinhos , Rio de Janeiro, v. 3, n. 2, p. 319-332, 1996. Disponível em https://www.scielo.br/j/hcsm/a/skxY88ZY4zk8CLkGhbFM3QR/?lang=pt .
RIBEIRO, Luiz Cláudio M. A invenção como ofício: as máquinas de preparo e benefício do café no século XIX. Anais do Museu Paulista , São Paulo, v. 14, n. 1, p. 121-165, 2006. Disponível em https://www.revistas.usp.br/anaismp/article/view/5438/6968 .
SCUDELER, Marcelo Augusto. A propriedade industrial e a necessidade de proteção da criação humana. In : Encontro Preparatório para o Congresso Nacional do CONPEDI, 2006, Recife. Anais do XV Encontro Preparatório para o Congresso Nacional do CONPEDI . Florianópolis: Fundação Boiteux, 2006. Disponível em http://www.publicadireito.com.br/conpedi/manaus/arquivos/anais/recife/politica_marcelo_scudeler.pdf .