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Confederação do Equador (1N)
A confederação do Equador, que neste ano de 2024 faz 200 anos, foi proclamada em 2 de julho de 1824, visando estabelecer um governo
constitucionalista e federalista, baseado na autonomia das províncias. Iniciado em Pernambuco, o movimento previa a adesão de outras províncias do Norte (que hoje correspondem à região Nordeste-Norte do Brasil), como Ceará, Alagoas, Rio Grande do Norte, e provavelmente o Piauí e o Pará. As raízes do movimento, entretanto, eram mais antigas e profundas.Para entender o movimento é preciso retroagir pelo menos até o ano de 1820, depois da Revolução liberal e constitucionalista do Porto. Não seria exagero, entretanto, voltar até o ano de 1817, quando se deflagrou a revolução, uma vez que os atores e participantes de ambos os movimentos, embora não exclusivamente, eram os mesmos.
A partir da Revolução do Porto, o império português passa a ter dois centros de poder: as Cortes portuguesas, em Lisboa, e a Coroa, no Rio de Janeiro, o primeiro associado ao constitucionalismo e o segundo ao despotismo. Em um primeiro momento, as províncias brasileiras, ante a proposta constitucionalista e de formação de juntas provisórias de governo eleitas localmente, aderem às Cortes de Lisboa, e não ao Rio de Janeiro, que era visto com extrema desconfiança pelas outras províncias do reino unido, sobretudo Pernambuco. A ideia de separação do Brasil não era estranha à Pernambuco, vide a Revolução de 1817, mas não necessariamente significava juntar-se ao Rio de Janeiro, de onde veio a forte repressão que o movimento de 1817 sofreu. No caso de se fundar um novo país, esse não seria liderado pelo Rio de Janeiro, com d. Pedro como imperador.
Na prática, a adesão às Cortes representou a exclusão dos governadores nomeados pela Coroa (pelo Rio de Janeiro) e a formação das juntas provisórias, escolhidas pelas câmaras, que eram eleitas pelo Povo, entenda-se aqui, pelas elites locais, livres, proprietárias, brancas (e não pela plebe). Nesse caso, em um primeiro momento, as elites locais preferiam ter um governo autônomo local ligados à Portugal, a se engajarem em uma aventura de independência a partir do Rio de Janeiro, que representava, além do despotismo do rei, o centralismo e a perda das conquistas e poderes locais.
Este processo, entretanto, não foi simples. O governador de Pernambuco em 1821 era o general Luís do Rego Barreto, que foi nomeado para “pacificar” a província depois da revolução de 1817 e governá-la com mão de ferro. As Cortes de Lisboa anistiaram os rebeldes de 1817 e esses puderam retornar a Pernambuco, instalando-se na vila de Goiana, em vez do Recife ou Olinda, grandes cidades onde estariam sob maior vigilância do governador da província.
O general Luís do Rego Barreto custou a jurar a constituição portuguesa, depois até mesmo do Rio de Janeiro. Tanto as Cortes Portuguesas quanto os liberais da província consideravam o governador como um representante do regime despótico que pretendiam derrubar. A aristocracia local queria criar sua junta de governo; o general Barreto criou uma própria junta, não eleita, mas escolhida por ele. Ao mesmo tempo, uma outra junta era formada em Goiana, composta dos ex-revolucionários de 1817 e proprietários de terra liberais. A junta de Goiana ameaçava tomar o Recife. O clima de tensão e disputa escalou para o temor de que a situação de crise se apresentasse como uma possibilidade de uma revolta social, de que a plebe, negros, pardos, libertos, livres e pobres, tentasse uma insurreição. Não custa lembrar que todo um vocabulário de liberdade e constitucionalismo circulava pela população das cidades brasileiras naqueles tempos, e o medo de um novo Haiti ainda era frequente entre as elites locais, por mais diversas que fossem.
Depois de um acordo e da partida de Luís do Rego Barreto de volta a Portugal, formou-se em outubro de 1821 a primeira Junta Governativa de Pernambuco, definitiva. À frente dela, o liberal e ex-revolucionário de 1817 Gervásio Pires, responsável pela negociação entre o governador e os liberais mais exaltados, evitando um colapso social na província.
Havia neste tempo diversos grupos defendendo suas ideias e plataformas: portugueses favoráveis à Coroa e ao despotismo, parte da plebe que almejava um novo Haiti, republicanos e liberais, mais exaltados ou mais moderados, federalistas e centralistas. Esses últimos eram mais favoráveis ao projeto do Rio de Janeiro, de união das províncias em torno do príncipe regente d. Pedro. Essa era a facção que reunia mais membros da aristocracia açucareira mais antiga e dos comerciantes de grosso trato já bem estabelecidos na província, liderados por Francisco de Paes Barreto (morgado do Cabo) e pelos irmãos Holanda Cavalcanti. O outro grupo, dos federalistas, era mais associado às Cortes de Lisboa, mas pouco se importava onde seria o núcleo do poder e da autoridade, desde que fosse mantida a autonomia provincial obtida depois da Revolução do Porto. Essa facção, mais heterogênea, era liderada por Gervásio Pires.
O grupo centralista preferia o Rio de Janeiro pois o sistema vigente os beneficiava. Eram parte de uma oligarquia local que ganhava status, poder e renda com o sistema colonial como funcionava até então. A desvantagem do sistema eram os altos impostos que deviam à Lisboa ou ao Rio de Janeiro, mas a manutenção do status quo os beneficiava. Do ponto de vista econômico não queriam nenhuma mudança, do ponto de vista social, almejavam títulos de nobreza e fidalguia, além da manutenção do sistema escravista. Ainda poderiam contar com o suporte militar da Coroa no caso de insurreições dos mais pobres.
Dentre as opções possíveis, a independência com Pedro no trono, era a mais segura para manter o status quo ante. As demais alternativas liberais – república, reino unido ou monarquia federativa – poderiam restringir o espaço político dessas famílias, ampliar o dos adversários, ou os dois. (CARVALHO, Marcus J. M. de. Cavalcantis e cavalgados: a formação das alianças políticas em Pernambuco, 1817-1824. Revista Brasileira de História. V. 18, n. 36, 1998, p. 7)
O grupo federalista, por outro lado, era mais heterogêneo. Nessa facção incluíam-se liberais moderados e exaltados, como frei Caneca. Os federalistas eram homens de riqueza mais recente, ou aqueles da antiga que não tinham muito lugar no poder local, excluídos dos grandes cargos da província. Os membros desse grupo desconfiavam do projeto do Rio de Janeiro, de teor mais centralizador, e pretendiam manter o poder local em suas mãos.
Ficava claro para os federalistas pernambucanos que o aumento do poder do príncipe regente – ou mesmo a separação de Portugal, sob a liderança do Rio de Janeiro – significaria a perda da autonomia conquistada, a volta ao status quo ante, com as mesmas famílias no mando local, e um governo autoritário e centralista na capital do Império. [...] Naquele ano, entre outubro de 1821 e setembro de 1822, trocar Lisboa pelo Rio não parecia ser um bom negócio para Gervásio Pires e seus partidários. (Ibidem, p. 8)
Defendiam o constitucionalismo federalista acima de tudo, a questão da origem do poder central, vindo do Rio de Janeiro ou de Lisboa, era considerada secundária. Ainda assim, tendiam a preferir o projeto das Cortes de Lisboa, de manter o império unido com a sede em Portugal – a separação do Rio de Lisboa poderia significar a perda da autonomia dos poderes locais e o Rio de Janeiro significava o poder despótico do regente. Era melhor manter o reino unido constitucional do que arriscar um governo absolutista a partir do Rio de Janeiro. A maior fragilidade do grupo federalista era, entretanto, a presença dos exaltados.
Eram [...] bons aliados na hora de mobilizar a população urbana do Recife e Olinda, mas maus companheiros quando se tratava de buscar apoio entre as camadas abastadas, sempre temerosas de que as reformas fossem longe demais [...]. (Ibidem, p. 8)
A estratégia da junta de Gervásio Pires de não aderir declaradamente a projeto nenhum, nem Lisboa nem Rio de Janeiro, criava problemas, no entanto. A postura mais independente sugeria que a junta pretendia uma autonomia dos dois projetos, que poderia acabar resultando na separação da província do restante do Brasil e até mesmo do império português.
O principal objetivo de Gervásio era manter seu grupo federalista no poder, independente do desenrolar dos acontecimentos, e garantir o princípio constitucional. Nesse ínterim, o grupo centralista, bem organizado e contando com o apoio de José Bonifácio, pressionava a junta para aderir ao Rio de Janeiro. Reunindo um grande grupo de pessoas, inclusive da plebe e tropas, partiram para cima de Gervásio para que ele assinasse um documento que jurasse fidelidade a d. Pedro. Para evitar o bombardeio da cidade e derramamento de sangue, acabou assinando o documento, o que tornou Pernambuco a primeira província a aderir ao governo do Rio de Janeiro. Gervásio Pires tentou posteriormente reverter a situação, uma vez que sua atitude desagradou a todos, centralistas, que pretendiam removê-lo do poder, federalistas, que não apoiavam o projeto do Rio de Janeiro, e certamente, exaltados, que defendiam a independência da província com a fundação de uma República.
A oposição centralista, ligada à Bonifácio, com o apoio das tropas e da plebe, que já vivia nas ruas a agitação daquele período de incertezas, articulou um golpe e conseguiu remover os federalistas do governo, dando início a uma junta centralista, o chamado “governo dos matutos”, composto em sua maior parte dos ricos donos de fazendas e engenhos da província, uma composição bastante aristocrática.
A oposição entre os apoiadores do Rio de Janeiro e os de Lisboa ganhou as ruas do Recife e penetrou também nas tropas. A radicalização levou à prisão de muitos portugueses pobres. As tropas e os homens pobres, livres ou libertos, brancos ou negros e pardos, liderados por Pedro Pedroso, tomaram as ruas da cidade por mais de uma semana. O episódio representou um risco real de convulsão social na província, com a sombra do haitianismo presente, e tanto centralistas quanto federalistas temeram a situação. Pedroso foi enviado preso ao Rio de Janeiro.
Em 12 de novembro de 1823, um acontecimento causa uma nova reviravolta na província: d. Pedro I dissolve a Assembleia Constituinte e Legislativa, responsável por redigir a Constituição do Império. O retorno dos deputados provinciais em finais de novembro pôs fim ao governo dos matutos. Novamente agitadas pelo discurso liberal radical, as tropas ficam a favor dos federalistas constitucionais. O apoio dos padres, como frei Caneca em Pernambuco e padre Mororó no Ceará – os dois exaltados –, que em suas pregações explicavam e falavam das vantagens do constitucionalismo, levou o discurso a uma parcela maior da população da província, além das elites centralistas e federalistas.
Os federalistas reuniram as câmaras de Olinda e do Recife e elegeram uma nova junta, tendo à frente o intendente de Marinha Manoel de Carvalho
Paes de Andrade. O governo dos matutos não reconheceu o golpe e tentou reverter a situação junto ao Rio de Janeiro. Paes de Andrade também tentou contato com o Rio de Janeiro, mas não foi bem-sucedido em ser reconhecido como legítimo presidente da junta de governo. É nesse momento que Pedro I tenta conduzir Francisco Paes Barreto à presidência da província, mas esse não conseguiu tomar posse, a indicação do imperador foi rejeitada pelas câmaras de Recife e Olinda que consideravam que somente Paes de Andrade poderia ser considerado um representante legítimo, porque fora eleito. D. Pedro ainda ordenou o bloqueio do porto do Recife, mas Paes de Andrade não cedeu e atacou a oposição centralista – o governo dos matutos fugiu para Alagoas, até a chegada de tropas vindas do Rio de Janeiro para controlar a situação. Não custa lembrar que em março de 1824 d. Pedro outorga a constituição redigida pelo conselho de Estado e com sua aprovação. Esse gesto autoritário levou a mais tensão na província, uma vez que a Constituição mantinha o centralismo português e ainda implementava o poder Moderador. Quando a guerra era iminente, Manoel de Carvalho Paes de Andrade lançou um manifesto dirigido às províncias do Norte e decretou a Confederação do Equador (em 2 de julho de 1824), convocando as outras províncias do Norte a aderirem ao governo federativo e constitucional que pretendia fundar. Embora capitaneada por Pernambuco, a confederação contou com o apoio da Paraíba, Piauí, Rio Grande do Norte e, principalmente, do Ceará, para constituir um governo federativo, constitucional, republicano, antilusitano.A repressão ao movimento foi muito dura e violenta. D. Pedro nomeou o general Francisco de Lima e Silva, pai do futuro duque de Caxias, para liderar o exército brasileiro. Para comandar a marinha de Guerra, foi convocado o almirante inglês Thomas Cochrane, que já havia atuado na “pacificação” do Maranhão. A cidade de Recife, com ataques por mar e terra não resistiu muito, mas os revoltosos deslocaram-se em direção ao sertão, onde resistiram alguns meses. A Confederação do Equador durou oficialmente até 29 de novembro de 1824. Muitos líderes rebeldes foram sumariamente executados como castigo exemplar, como frei Caneca. Pernambuco, como punição, perdeu a comarca do Rio de São Francisco, extensa faixa de terra, que foi inicialmente transferida para Minas Gerais (depois de três anos foi anexada à Bahia).
A coleção Confederação do Equador do acervo do Arquivo Nacional foi reunida e criada a partir de documentos avulsos e cópias de documentos custodiados pela Biblioteca Nacional. O acervo também foi dado a público por meio das Publicações Históricas do Arquivo Nacional, de números 22, 23, 24 e 25 (de 1924 a 1931). A coleção é dividida em duas séries, Caixas e Códices, que estão todos tratados e digitalizados, disponibilizados no Sistema de Informações do Arquivo Nacional.
Depois de Pernambuco, o Ceará foi a província que mais ativamente participou da confederação. Antes mesmo da proclamação de Paes de Andrade, algumas vilas do Ceará, como Crato, Icó e Quixeramobim (vila do Campo Maior) romperam com o Rio de Janeiro e estabeleceram governos independentes, depois aliados dos revoltosos da confederação de Pernambuco. Alguns dos mais destacados líderes do movimento foram Tristão Gonçalves de Alencar “Araripe”, José Pereira Filgueiras e o padre Mororó, Gonçalo Inácio de Loyola Albuquerque e Mello (fuzilado em 1825).A documentação contida na coleção Confederação do Equador é bastante profícua para o estudo do movimento no Ceará, na qual se encontram documentos como proclamações, ofícios, pedidos de reforços militares, relatórios de atividades, relação de presos, comunicações sobre presos condenados à morte, ordens de devassa e relatórios sobre a rebelião. Destacam-se também no acervo os panfletos manuscritos que circulavam entre a população de Pernambuco, conclamando os cidadãos para rebelarem-se contra a conduta do imperador e fundarem uma República no Norte do país. Há também correspondências entre as províncias de Pernambuco e da Paraíba, e do general Francisco de Lima e Silva, e cópias de documentos custodiados pela Biblioteca Nacional sobre a Confederação do Equador. Há ainda alguns impressos datados de 1829.