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Paleografia, o que é?
Fundamental para a história, a Paleografia, estudo da escrita antiga, transcreve a caligrafia antiga e incompreensível para nossa grafia atual, possibilitando o acesso à informação contida na documentação. Ela decifra os documentos manuscritos. Inserida em várias áreas, como Museologia, Biblioteconomia, Historia e Direito, no Brasil a paleografia está inserida como uma disciplina no curso de Arquivologia.
Segundo Marcelo Siqueira, Coordenador de Documentos Audiovisuais e Cartográficos do Arquivo Nacional (AN) e professor do Departamento de Arquivologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UNIRIO, para se tornar um paleógrafo é necessário gostar muito, realizar vários cursos, participar de congressos, encontros, escrever artigos e estar inserido no meio. “A gente se torna Paleógrafo por insistência na capacitação, produção e reconhecimento dos seus pares”.
Marcelo, paleógrafo de formação e professor de paleografia, falou sobre a importância dessa técnica no Arquivo Nacional.
Ascom: O que é Paleografia?
Marcelo: Primeiro vamos remeter ao nome Paleografia. A tipologia da palavra: paleo vem de antigo e grafhia de escrita. Escrita antiga. A ideia inicial da paleografia surgiu no século XVII, XVIII, no sentido de compreender uma escrita mais antiga e fazer uma transcrição, conseguindo decifrar seu conteúdo. Para um olhar não treinado, é impossível ler uma caligrafia antiga, quando as letras eram escritas de forma diferentes, quando as abreviaturas não eram usuais, quando a grafia das palavras não tinha uma padronização. Não é uma tradução, nem uma atualização da grafia, e sim transformar a letra, a grafia, a abreviatura, incompreensível aos nossos olhos, numa grafia atual, para que as pessoas possam ter acesso ao conteúdo daquela informação. A Paleografia é o estudo da escrita antiga, não necessariamente uma escrita medieval, pode ser uma escrita contemporânea com um traçado diferente ou não usual, necessitando ter esse estudo para que se possa ter o conteúdo disponibilizado.
Ascom: Qual a importância da paleografia?
Marcelo: Muita gente pergunta por que é necessário estudar paleografia. Acham que é uma questão artística, um diletantismo. Explico que um documento de arquivo tem como sua primeira função, a mais importante, provar algo. Ele sempre prova alguma coisa: uma atividade, uma ação, algum tipo de função que uma pessoa ou uma administração exerceu. Se um documento prova algo, temos que conhecer o seu conteúdo, para saberemos o que ele está provando, evitando informações erradas. Não podemos descrever um documento sem saber o que ele contém. Por isso a paleografia é muito importante para bibliotecas, arquivos, museus, centros de documentação, qualquer instituição com documentos manuscritos precisa ter paleógrafos para conhecer o conteúdo dessa documentação.
Ascom: Como a Paleografia se enquadra no AN?
Marcelo: O AN é um dos maiores arquivos do mundo, com uma documentação textual que gira em torno de 55 Km de documentos. Vamos imaginar que metade disso seja manuscrito e que mais da metade dessa documentação manuscrita é incompreensível para 90% das pessoas. De que adianta termos uma documentação vastíssima se não conseguimos ler, entender e ter acesso? Como vamos contar a história do Brasil, por exemplo, se não conseguimos ter acesso aos documentos? A importância da Paleografia, tanto para o AN, quanto para qualquer instituição que tenha documentação manuscrita, é que se não sabermos ler o que está ali, não saberemos seu conteúdo. É de suma importância que o AN tenha em seu quadro pessoas qualificadas a ler esses documentos. O usuário, em sua maioria, não tem acesso a esse conhecimento e, por isso, não conseguem ler o que está escrito nessas documentações.
Ascom: Qual o documento mais significativo do AN que precisou da Paleografia?
Marcelo: Temos diversos documentos. Atualmente, grande parte da consulta do AN se refere à imigração, documentação de entrada de imigrantes, que não é muito antiga, é do século XIX, inicio do século XX. Esse acervo precisa passar por uma transcrição paleográfica, pois o tipo de caligrafia daquela época era diferente, tinha uma letra muito estranha. Precisa da Paleografia para entendimento e provas das informações.
Quanto à pesquisa, grande parte da documentação da escravidão, da independência, do processo do Brasil Colônia, da colonização, precisa de trabalho de Paleografia. Gostaria de destacar nossos livros de Sesmaria, a documentação textual mais antiga do AN, de 1594. É uma documentação que, qualquer pessoa sem treinamento paleográfico, não consegue ler uma palavra! Esses livros falam sobre a colonização no Rio de Janeiro. Como vou estudar a colonização do Brasil, do Rio de janeiro, saber quem recebeu determinadas terras, conhecer a construção administrativa e política da cidade, que também é a do Brasil, sem entender o que está escrito? Sem o conhecimento do conteúdo dos documentos, não consigo conhecer a historia do meu país, do meu estado. Por isso a Paleografia é de extrema importância, principalmente em instituições como o AN que possui um acervo textual manuscrito muito vasto. Precisamos saber o que está escrito nos documentos.
Ascom: Quantos profissionais têm hoje no AN aptos a trabalharem com Paleografia?
Marcelo: Temos na CODES uma área de transcrição de documentos que deve mudar o nome para Equipe de Paleografia. É o nome mais adequado, pois temos seis profissionais, de formações diversas, que possuem treinamento em transcrição de documentos. Claro que a paleografia não se resume a mera ação de transcrever um documento. O paleógrafo precisa conhecer questões referentes ao suporte, às tintas, ao contexto histórico, a diplomática - que é a área do conhecimento que estuda o documento especificamente, sua tipologia documental e sua forma documental. No AN tivemos alguns grandes paleógrafos, como o Prof. Jaime Antunes e Victor Manuel da Fonseca. Também temos técnicos da área de certidão que fizeram curso de paleografia. Mas acho que o AN, pela dimensão que possui, deveria investir nessa área, ter uma equipe maior. A equipe de Transcrição de Documentos trabalha, basicamente, para atender ao usuário no sentido de fazer certidões com base em alguns documentos solicitados, mas como a demanda é muito grande, não conseguem a pro atividade de transcrever documentos importantes da instituição. É uma equipe muito bem treinada, muito dedicada e que merece todo o nosso louvor. Precisaríamos de uma equipe bem maior. Esse trabalho geralmente é feito por arquivistas com certo conhecimento para poder transcrever documentos antigos e entender o que está escrito ali.
Ascom: Conte alguma curiosidade que vivenciou no AN envolvendo a Paleografia.
Marcelo: Tem casos em que vamos transcrever documentos sem a menor ideia do que está escrito. Como na documentação pessoal, de cartas. Às vezes, lemos coisas diferentes, picantes, que a família do interessado não imagina que esteja naquela situação. Também somos muito acionados para fazer transcrições de documentos que provam alguma coisa, como partilhas, testamentos, ou seja, documentos que ninguém sabe o que está escrito ali, mas que há interesses. Existe um caso muito conhecido que aconteceu na universidade, onde fomos procurados, há muitos anos, por um advogado para fazer uma transcrição tendenciosa, onde uma determinada pessoa teria a pose de um terreno. Quando fizemos a transcrição, vimos que não era nada daquilo.
No AN fazemos a transcrição muito ligada ao que é solicitado pelo usuário. Mas temos uma quantidade expressiva de pedidos e de documentos manuscritos. Brincamos que o Paleógrafo é como se fosse um semideus, pois se Deus tem a capacidade de ressuscitar as pessoas, nós temos a capacidade de ressuscitar a informação que está perdida, que está morta. Não havendo esse trabalho, ninguém conseguirá ler a informação e o documento acaba virando peça de museu. Deixa de ser um documento arquivístico, que prova algo, que informa e que traz novas identidades e características para a história.
Ascom: Qual o papel do AN na difusão da Paleografia?
Marcelo: Queria falar que o AN deve exercer esse protagonismo na área de paleografia, pelo seu acervo e importância. Temos uma Câmara Técnica do CONARQ destinada à Paleografia e Diplomática. Já realizamos congressos e mesas redondas de paleografia. Eu e o professor Franklin Leal estamos terminando o Dicionário de Paleografia e Diplomática que deve ser editado pelo AN no inicio do ano que vem. Esse trabalho será editado pelo AN. É importante que a instituição compreenda a importância da paleografia. Não é algo menor, com diletantismo, voltada para coisa de artista. A Paleografia é de extrema importância para um país que tem uma vasta documentação. O Brasil é o país das Américas que tem o maior número de documentação manuscrita, sendo maior que EUA e México. O Rio de Janeiro é a capital da documentação manuscrita, onde temos o AN, Itamaraty, Arquivo Geral da Cidade, Arquivos Militares, Biblioteca Nacional, com uma documentação valiosíssima, vastíssima e, sem paleógrafo, não vamos conseguir compreender esses documentos. A pessoa que tem apenas um bom olhar para a caligrafia antiga, mas sem a técnica, vai conseguir transcrever parte do documento. Mas imagina se a pessoa troca um nome ou não compreende uma abreviatura? Modifica completamente o significado do documento. Tem uma historia muito interessante de um aluno de doutorado que fez sua tese sobre uma rebelião no Brasil Colônia. Ele leu que o governo local mandava dois soldados para sufocar a rebelião. Antes do número dois no documento, tinha um símbolo de cifrão. A pessoa por não ser paleógrafa, sem o conhecimento, não entendeu o significado. Na verdade, era uma abreviatura que significa a multiplicação por mil. Eram dois mil soldados. Muda completamente a compreensão de tudo! Isso demonstra a importância de se conhecer a Paleografia. Se transcrever de forma errada um documento, uma história errada será construída. Uma história equivocada. A figura do paleógrafo é fundamental. É muito importante que o AN invista na sua equipe e forme novos paleógrafos.
Amanhã, dia 11 de maio, será realizado no Arquivo Nacional o I Colóquio Luso-Brasileiro de Paleografia, que reunirá três dos maiores paleógrafos de língua portuguesa na atualidade. O evento será transmitido ao vivo pelo Facebook do AN.
Saiba mais sobre o Colóquio: http://www.gov.br/arquivonacional/pt-br/index.php/banner-principal/466-i-coloquio-luso-brasileiros-de-paleografia.html
Ascom
11/maio/2017