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Aconteceu no Arquivo Nacional: Drummond e o mensário
Carlos Drummond de Andrade fez uma homenagem ao Arquivo Nacional em maio de 1972. Em sua coluna no “Jornal do Brasil,” Drummond escreveu uma crônica intitulada “O Arquivo & Maria” que teve como mote disparador o fato de ter recebido do carteiro o MAN – Mensário do Arquivo Nacional. Esse boletim, lançado em 1970, durante a gestão de Raul Lima, era uma ferramenta de comunicação do Arquivo Nacional que a um só tempo divulgava as atividades desenvolvidas no órgão a cada mês, bem como se destinava à difusão do acervo da instituição.
Assim Carlos Drummond iniciou o tributo: “Todo santo mês, recebo com agrado o folheto que o carteiro me traz. É o MAN, boletim do Arquivo Nacional. Raul Lima, diretor do órgão, conseguiu esta coisa surpreendente: leitores para uma publicação oficial.”
O texto foi publicado no “Jornal do Brasil”, dia 27 de maio de 1972. MAN – Mensário do Arquivo Nacional, junho de 1972, ano III, n. 6, p. 16-17.
Leia a crônica na íntegra:
O Arquivo & Maria
Carlos Drummond de Andrade
Todo santo mês, recebo com agrado o folheto que o carteiro me traz. É o MAN, boletim do Arquivo Nacional. Raul Lima, diretor do órgão, conseguiu esta coisa surpreendente: leitores para uma publicação oficial.
Como? Apenas, contando jornalisticamente o que vai por sua repartição, os serviços que se ampliaram ou reorganizaram, o que ali se estuda e produz. Não é semostração vaidosa; eu diria prestação de contas, em termos de comunicação atual. Pouco se sabe do que fazem nossas agências administrativas, fora da publicidade política e dos relatórios indigestos. Quando uma abre as portas à curiosidade pública, revelando-nos o seu dia-a-dia de trabalho, a gente se espanta. E curte a satisfação do acionista a quem a diretoria da empresa, em assembleia-geral, exibe os dividendos do exercício. Gordos.
Pois a nova imagem do Arquivo dá gosto ao contribuinte: dinheiro bem investido em serviço que abandonou a rotina e aplica métodos produtivos, com imaginação criadora. O resultado é que o ambiente de trabalho atrai outros trabalhadores. Basta ver o número de estudiosos que acorrem hoje à Praça da República, 26 – mina de ouro para a pesquisa histórica. Mirtes Palermo, de São Paulo, rastreia a maçonaria na evolução do Brasil; Odilon Túlio, Deputado pelo Paraná, quer saber do Barão do Serro Azul; Marinete Santos, de São Gonçalo, vira-se para a urbanização no recôncavo da Guanabara na primeira metade do século XIX; Valdemar Barbosa, de Belo Horizonte, aprofunda-se na contribuição de Minas para a Independência; Marivone Chaim, de Goiás, consulta as leis sobre índios goianos no século XVIII; Herbert Klein, da Universidade de Columbia, Nova Iorque, mergulha na história demográfica do Império. Cito ao acaso; são dezenas de pesquisadores, do Brasil e do estrangeiro, que lá estão debruçados sobre papel, em ambiente acolhedor, enquanto Raul Lima dinamiza o velho Arquivo, a que José Honório Rodrigues dera já um saudável empurrão para a frente.
Com tanto que fazer, o Raul, num destes dias de maio, ainda foi à ABI, levar uma peça rara para exposição comemorativa do aniversário da Lei Áurea: a 3.353 em pergaminho, com letras coloridas e desenhos. Logo que a exposição acabou (isto não consta do boletim, é reportagem minha), Raul pegou da lei para recolhê-la ao Arquivo, antes que um colecionador distraído a metesse na pasta, como se fosse um vespertino. Mas era noite, a repartição estava fechada, e o diretor, guardião zeloso, levou o pergaminho para casa, onde estaria seguro. Na manhã seguinte, antes de ir para o Arquivo, lembrou-se de mostrá-lo à sua cozinheira, uma paraibana que não esperou pelo Mobral para se alfabetizar: paga a uma colega que tem curso primário, e que lhe ministra aulas à noite. O quarto de dormir de Maria é miniatura de escola e exemplo de independência cívica.
– Olhe aqui, Maria, naquele tempo os trabalhadores eram escravos. Labutavam de graça, sofriam maus tratos e eram vendidos como gado. Mas a lei escrita neste papel acabou com isso. Foi uma Princesa que soltou esta lei, uma Princesa que ficou sendo chamada de Redentora. Repare na assinatura dela aqui, há 84 anos.
Maria fitou o pergaminho com olhos de ver além do pergaminho, ficou um instante parada, meditando. O fruto da meditação surgiu nesta pergunta:
– E...não mataram ela, doutor?
Raul Lima, perplexo diante dessa “extraordinária intuição política”, achou mais pedagógico, por enquanto, não explicar por miúdo a Maria que matar, propriamente, não mataram ela, ninguém pensou em matar. Ele espera que, aprimorada a instrução de sua auxiliar culinária, esta possa ler em um compêndio qualquer de História, e entender, o que Cotegipe respondeu à Princesa Isabel, quando a Regente, lhe perguntou se não fora uma boa coisa acabar com a lepra da escravidão:
– Vossa Alteza redimiu uma raça, mas perdeu o seu trono.
Fonte: Mídias Sociais / Coordenação-Geral de Acesso e Difusão Documental - COACE