Noticias
Notícia
Um trem para chamar de seu
Enquanto o mundo moderno vive a multiplicar seus trilhos, sofremos para desenterrar uns e criar outros, um resultado que só depõe contra a capacidade do país de se reinventar
luce pereira (texto)
lucepereira.pe@dabr.com.br
Antes de ser um referencial de desenvolvimento, o trem é uma questão afetiva. Está na música, no cinema, na pintura e passeou pelos trilhos da infância e juventude de muita gente, até a década de 1970, quando então os milhares de quilômetros de ferro foram enterrados por falsa crença dos poderes político e econômico de que só se chegaria ao futuro de automóvel.
Era um retrocesso que nos custaria preço altíssimo e por ele D.Pedro II deve ter sacolejado no túmulo, afinal, havia concebido, já em 1874, o que depois chamaríamos de Transnordestina, este elefante estacionado entre a burocracia e a pouca vocação do Brasil para acelerar naquilo que faz toda a diferença.
Quando o último trem se despediu da paisagem de Pernambuco, foi como se levasse junto as belas imagens de um tempo onde uma estação significava muito mais do que um lugar de encontros e despedidas. Era uma promessa na qual cabiam palavras como emoção, mistério, conquista, desafio; era uma porta aberta para novas sensações e realidades.
Quem ama o tempo dos trens não gosta de olhar para trás, para não ver as ruínas em que se transformou a maior parte das estações. É como se tanto abandono significasse uma espécie de menosprezo do poder público por uma parte valiosa do passado de cada um e refletisse, também, a falta de sintonia dos governos com as reais necessidades da população. Enquanto o mundo moderno vive a multiplicar seus trilhos, sofremos para desenterrar uns e criar outros, resultado que só depõe contra a capacidade do país de se reinventar.
Vi, claramente, em várias cidades da Europa riscadas por trilhos de trens tradicionais e de VLTs, o abismo que nos separa da parte do mundo onde a preocupação número um é qualidade de vida – e isto implica diretamente na facilidade com que se transportam, confortável e adequadamente, pessoas e riquezas. Em alguns destes lugares, a diferença me fez respirar fundo.
Lembrei dos anos entre o Recife e Belo Jardim, minha terra natal; da experiência e sensações vividas no primeiro e único trem em que viajei na adolescência; do quanto a viagem acrescentou à minha vocação para contar histórias – no jornalismo ou na ficção– e então lamentei por quem nasceu depois, sem ter um trem “para chamar de seu”.
Agora a emoção é outra, de ver o país tentando se redimir do extremo equívoco e recuperar o tempo perdido. De repente, no meio de tantas notícias chegadas à redação do jornal, uma reforça a esperança de que os vagões voltarão à paisagem para nunca mais deixá-la. Hoje, um grupo de professores e alunos da Universidade de Pernambuco (UPE), apoiado pelo Movimento Nacional Amigos do Trem, amanhece o dia numa caminhada a partir do Curado em direção a Nazaré da Mata. Vai buscar o apoio das comunidades ao longo do percurso para trazer de volta o transporte ferroviário de passageiros àquela região. A Companhia Brasileira de Trens Urbanos (CBTU), felizmente, já deu parecer favorável à proposta.
Tudo leva a crer que esta é a hora. Se perdermos este trem, perderemos, também, a chance de mostrar que temos capacidade de aprender com os erros. Neste caso, um dos nossos maiores. Ainda será possível entender a importância deste ilustre senhor – que está além da razão – e se sensibilizar com o que diz a arte a respeito dele. Um dia, entrei no Teatro de Santa Isabel para assistir ao monólogo Dona doida, obra da escritora mineira Adélia Prado, e ouvi a atriz Fernanda Montenegro disparar, de lá de cima do palco: “Um trem atravessou a minha vida”. A minha também. Por isso, em lugar de aplaudir, chorei.