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Um fatídico dia na história da ferrovia espanhola
Artigo: Um fatídico dia na história da ferrovia espanhola
12/08/2013
Peter Eberhard Mihm*
Ao dia 19 do Setembro de 2013, às 14 horas, deverá ser realizado o leilão para a primeira concessão do serviço público de transporte ferroviário de passageiros por Trem de Alta Velocidade do Brasil. Conforme vários artigos publicados, a ANTT vai receber entre outras uma oferta de empresas da Espanha, o estado que dispõe, atualmente, a segunda maior rede de alta velocidade (superada somente pela China). Ao lado dessa concorrência, as investigações do acidente de alta velocidade na Espanha, algumas semanas atrás, merecem grande atenção. Com as investigações ainda em curso, a ministra espanhola do fomento apresentou no último dia 09 de agosto uma lista de 20 propostas que pretendem melhorar a segurança do tráfego ferroviário. As razões por trás dessa lista, que inclui (ponto 16 da lista) até expedição de bilhetes gratuitos para crianças menores de 4 anos de idade, são mais que duvidosas.
Será que o estado do transporte ferroviário da Espanha está numa situação tão crítica agora que menores de 4 anos de idade devem contribuir para a seguridade ou que o ministério não poderia esperar o final das investigações para decretar as ações necessárias para melhorar a segurança do tráfego ferroviário? A lista também propõe a inclusão da câmera do parlamento nas investigações do acidente. A participação de políticos nas investigações do acidente, realizadas em geral por especialistas ferroviárias e policiais, é questionável. Será que as investigações poderiam resultar em critérios que poderiam comprometer o management das empresas estaduais ou políticos envolvidos na administração ou autorização da operação ferroviária terminando num acidente que poderia levar a ANTT a excluir a Espanha do processo do TAV?
Como foi amplamente noticiado, no dia 24 de Julho, um trem do tipo Alvia, que partiu de Madrid em direção a Ferrol (Espanha), descarrilou, chocando-se contra um muro de concreto, depois de passar por um trecho de alta velocidade inaugurado em 2011. O trem, depois ter percorrido um trecho de 80 km a uma velocidade de 200 km/h, a 4 km da estação de Santiago de Compostela, entrou a cerca de 192 km/h numa curva que somente permitia uma velocidade máxima de 80 km/h. O impacto do descarrilamento foi tão grande que as locomotivas e vários carros do trem ficaram destruídos, deixando um total de 80 mortos e mais de 130 pessoas gravemente feridas.
Duas investigações estão sendo realizadas para esclarecer as responsabilidades e as causas do acidente, uma pelo Ministério da Justiça e outra em paralelo pela Comissão de Investigação de Acidentes Ferroviários (CIAF), do Ministério de Desenvolvimento.
Os especialistas ferroviários espanhóis levarão algum tempo para concluírem quais foram as causas dessa catástrofe e definir métodos de prevenção para evitar futuros acidentes. As investigações principais concentram-se no excesso de velocidade do trem no momento do acidente, sendo a linha equipada com um sistema de sinalização nacional da Espanha, ASFA, e o trem sendo dirigido por um maquinista experiente.
Conforme fontes oficiais, o maquinista conduzia há mais de um ano trens de alta velocidade na linha Madrid – Ferrol. Deve-se considerar que para um maquinista obter licença de condução exigem-se conhecimentos atualizados das características técnicas do trem e das características geográficas e operacionais da linha, incluindo conhecimentos de sinalização, curvas e estações da linha.
As primeiras revelações mostram que momentos antes do acidente o maquinista conversava no celular com um funcionário ferroviário, provavelmente um vendedor de bilhetes sobre a possibilidade de uma parada excepcional do trem numa estação depois de Santiago de Compostela. Possivelmente essa conversa desviou a atenção do maquinista por vários minutos da sua tarefa principal: conduzir o trem com segurança na linha. Diferentes fontes indicam que o maquinista aparentemente ignorou dois avisos sonoros de redução da velocidade pelo sistema de sinalização ASFA, enquanto outros especialistas informam que os avisos sonoros indicaram a via livre e sinais verdes em frente do trem. A questão então é porque o maquinista somente reagiu a uma distância de apenas 200 m da curva para reduzir a velocidade de 192 km/h para 153 km/h. Muitos especialistas se perguntam se a monotonia da via reta com uma extensão de 80 km em alta velocidade e que termina somente a poucos metros antes de uma curva de 90° ou o modo operacional que exige a condução de um trem por mais de 20 minutos em alta velocidade causou uma falha humana e contribuiu para o acidente.
A lista de perguntas é longa e somente uma investigação sincera e independente dos interesses nacionais, do gestor da infraestrutura e companhia de operação ferroviária poderão esclarecer a tragédia. As investigações não podem se limitar na possível falha do maquinista, mas também verificar as ações anteriores ao acidente por parte do gestor da infraestrutura – a ADIF - como, por exemplo, o traçado da linha, o funcionamento da sinalização e das medidas por parte da operadora RENFE que permitiram que a falha singular de um maquinista causasse um acidente catastrófico.
Espera-se que as investigações considerem também as regras aplicadas ao projeto que previa usar o sistema ASFA designado para uma velocidade de até 200 km/h. Diferentes fontes indicam uma velocidade dos trens em trechos anteriores de Santiago de Compostela de até 220 km/h (tipo Alvia) e mesmo 250 km/h (tipo Avant). Será que a sinalização não era adequada à linha da alta velocidade ou ao trecho final? Tudo indica que o sistema nacional espanhol ASFA somente emitiu alarmes sonoros, mas não atuou automaticamente os freios do trem antes da curva. Nos primeiros dias após o acidente, o gestor da infraestrutura reforçou a sinalização da linha colocando balizas adicionais do sistema ASFA antes da curva, fazendo com que os trens passem por ela a uma velocidade reduzida de 30 km/h (anteriormente 80 km/h).
O sistema ETCS nível L2, designado para controlar trens de alta velocidade acima de 250 km/h está previsto para entrar em serviço no trecho Ourense –Santiago de Compostela até o ano de 2017 / 2018. Atualmente, o sistema ETCS nível L1, apresentando os sinais ASFA em forma harmonizada na cabine do maquinista e adicionalmente aos alarmes visuais e sonoros, causa se necessário uma frenagem de emergência do trem, está instalado na infraestrutura da via e a bordo dos trens. Por falta de compatibilidade dos sistemas instalados a bordo dos trens e na da via, a operadora RENFE avisou aos maquinistas dessa linha para desativarem o sistema ETCS. Como nos dias depois do acidente do Lac Megantic, no Canadá, que causou mais de 47 mortes e deixou uma cidade queimada e destruída, especialistas confirmam que também no caso do acidente de Santiago de Compostela, o sistema ETCS, instalado e usado adequadamente, poderia ter evitado um acidente tão trágico.
As investigações deveriam se estender também às atividades dos gestores das companhias e autoridades ferroviárias. As normas e diretivas europeias exigem a execução de uma análise de risco no caso de mudanças como a construção ou alteração da infraestrutura, veículos ou equipamentos ferroviários. Devem se considerar para estas mudanças não somente a fabricação, mas também a operação, construção e a gestão ferroviária. Será que as advertências de especialistas ferroviários de que o alinhamento e a combinação de uma linha de alta velocidade com uma curva de 90° com velocidade bem inferior não foram atendidas de uma forma adequada pelos responsáveis pela segurança do gestor da infraestrutura ou da operadora ferroviária?
Enquanto as investigações do acidente devem esclarecer as possíveis causas de primeiro grau que levavam diretamente ao acidente entre outras as contribuições da falha humana, da sinalização, do modo da operação, as investigações do segundo grau devem estender-se para examinar as causas que indiretamente contribuíram para o acidente como, por exemplo, o regulamento em vigor para a construção e a operação da linha.
As investigações do terceiro grau, considerando as atitudes dos gestores de segurança das companhias ferroviárias e as atividades das autoridades nacionais que autorizaram a construção e operação ferroviária na linha através das companhias ferroviárias, poderiam contribuir não somente para melhorar o sistema ferroviário de alta velocidade da Espanha, mas também para o sistema ferroviário mundial. Deste modo os resultados das investigações podem ser também interessantes para o setor ferroviário do Brasil, considerando a expansão da rede ferroviária no futuro e os diferentes serviços de transporte, seja o transporte de cargas, o de passageiros intercidades e, sobretudo o transporte ferroviário de alta velocidade. As lições tiradas do acidente poderiam ajudar a definir e executar melhor as responsabilidades das companhias ferroviárias e também das autoridades nacionais, por exemplo, para acompanhar e ajudar os gestores de segurança no controle da construção e operação ferroviária por especialistas ferroviárias independentes do projeto.
*Peter Eberhard Mihm é diretor e engenheiro principal da empresa Consultoria Ferroviaria. Ele é especialista e consultor ferroviário com mais de 30 anos de experiência em segurança ferroviária. Possui vários artigos publicados e é palestrante frequente em seminários e congressos sobre operação ferroviária interoperável, confiável e econômica em todo mundo. Peter Mihm foi gerente de Aceitação Cruzada da ERA, a Agência de Ferrovias Europeias, de 05/2005 até 04/2013. info@consultoriaferroviaria.com