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De BH a Vitória no trem de todo mundo
Única linha férrea interestadual de passageiros do país, trecho com 664 quilômetros é opção à rodovia para habitantes de cidades ao longo do percurso que liga Minas ao mar
Paulo Henrique Lobato - Enviado especial
Cariacica – A locomotiva e os 13 vagões que partem todas as manhãs de Belo Horizonte para Cariacica (ES) levam gente de diferentes idades, raças, credos e classes sociais. Há mulheres com bolsa de grife e mulheres com Bolsa Família. Há homens com sapatos lustrados e homens com sandálias de tiras presas por pedaços de arame. Há adolescentes que viajam com os pais e adolescentes que viajam com os filhos. Há cristãos, ateus e agnósticos; heterossexuais e homossexuais. Há brancos, negros, pardos e índios. Todos vão no chamado Trem da Vale, a única linha diária interestadual de transporte ferroviário de passageiros no Brasil. O trecho, de 664 quilômetros e 30 estações, é percorrido em 13 horas. Na classe executiva, a tarifa máxima é de R$ 87. Na econômica, R$ 56.
O EM embarcou no trem, oficialmente batizado de Vitória-Minas, para conhecer o perfil dos usuários e listar predicados e sugestões ao modal, uma vez que o governo e a iniciativa privada estudam a viabilidade de aproveitar trilhos do transporte de cargas para implantar novos trajetos de passageiros. A Vale não revela se o serviço é superavitário – a mineradora é obrigada a mantê-lo como contrapartida social à sua desestatização, em 1998. Para muitos usuários, porém, a linha é o principal meio de transporte de uma cidade a outra. Inaugurada em 1907, a composição carrega cerca de um milhão de pessoas por ano.
Elas entram nos vagões para ir ao emprego, ao médico, à casa de parentes, a velórios etc. Pablo Bretas Zunzarrem, de 30 anos, usa o trem para ir ao trabalho. Ex-jogador das categorais de base da Ponte Preta (SP), hoje o rapaz ganha a vida como tatuador. A cada dois dias, ele vai da colonial Barão de Cocais a BH, onde “colore” os corpos de clientes. Pablo poderia fazer a viagem de ônibus, mas justifica que pelos trilhos sai mais em conta: “Desembolso R$ 14. Se a fizesse da outra forma, pagaria R$ 32. Tanto o trem quanto o ônibus fazem o percurso em praticamente uma hora e meia. Contudo, se houver um acidente (no asfalto), o trânsito fica parado”.
A estrada a que ele se refere é a BR-381, rotulada de Rodovia da Morte. O receio de ser a próxima vítima é o que leva o empresário Pedro Resende, de 22, a viajar de Governador Valadares a BH na linha férrea. “Visito minha mãe a cada dois meses. Ir pela 381 é arriscar a vida. No Brasil, as estradas são ruins. Os motoristas, imprudentes”, justifica o jovem, que morou quase duas décadas nos Estados Unidos. Ele retornou à terra natal, há dois anos, por causa da recessão econômica mundial. No Vale do Aço, montou um haras com o pai. “Cavalo é a minha paixão”, disse o rapaz enquanto observa o supervisor da composição, Enoque Freitas, percorrer a composição.
Histórias Há nove anos na linha, Enoque coleciona histórias: “Me recordo da vez em que a tripulação recebeu um convite. Uma moça nos escreveu dizendo que conheceu o noivo numa viagem e que fazia questão de os funcionários irem ao casamento”. A locomotiva ajuda a matar a saudade de vários casais. Para se encontrar com o namorado, Magali Alves, de 45, embarca, a cada dois fins de semana, de Coronel Fabriciano à capital mineira. “O doído é deixá-lo aqui”, lamenta a mulher, que planeja se casar com Cléber. Sempre que pode, ela viaja na compania da filha, Vitória, de 8.
Já o biólogo Gracimério José Guarneiro, de 38, peregrina sozinho, pelo menos uma vez por mês, de Valadares a Vitória (ES), onde busca tratamento médico. “Tenho uma inflação grave na medula e um problema numa das pernas. Não posso ficar muito tempo com a perna na mesma posição. Por isso prefiro o trem ao ônibus. Nos vagões, posso me levantar e andar de um lado para o outro. Se eu fosse de ônibus, ao fim do trajeto, a inflamação iria piorar e ficaria de três a quatro dias numa cama”.
O vaivém de pessoas de um vagão a outro permite uma melhor vista da paisagem: fazendas do século 18, montanhas de pedras no lado capixaba, leitos de rios, pontes de ferros e de cimento, túneis etc. “Bom é viajar assim: vendo o verde das serras, apreciando o Rio Doce e respirando ar puro”, comentou a auxiliar de serviços gerais Marluce Lemos, de 32. Moradora de Governador Valadares, ela e o filho, Wendel, de 10, usaram o trem para visitar parentes em Vitória.
Quem não queria ter entrado no trem essa semana foi dona Maria Aparecida Rampinelli, de 56. Seu coração percorreu o trecho de João Neiva (ES) a Ipatinga machucado: “Volto do velório de minha mãe”. Na poltrona atrás, enquanto tenta fazer a filha dormir em seu colo, uma mãe conta a história de Chapeuzinho Vermelho. Na Vitória-Minas, histórias – com final feliz ou triste – é o que não faltam.
Comércio na beira da linha
De muito longe, crianças e adultos que moram próximo à estação de Tumiritinga, uma pequena cidade no Leste de Minas, ouvem o apito da locomotiva. Num piscar de olhos, vários deles correm para perto dos trilhos. Eles chegam com bacias de alumínio ou tabuleiros de plásticos lotados de pé-de-moleque e doces de maracujá, laranja e côco. Todos têm pouco tempo para vender as iguarias aos passageiros da Vitória-Minas: a composição para na localidade por no máximo dois minutos.
“Eu mesmo quem faço os doces”, gritou dona Maria das Graças Veiga, de 55 anos e que vendeu, na última segunda-feira, 10 doces de uma só vez – cada um custa R$ 2. Os passageiros do trem ajudam a fomentar os negócios de muitas famílias de pequenos municípios cortados pelos trilhos. Érica Cristina Calixto, de 29, levou quatro doces para os filhos: “Ai de mim se chegar em casa sem as guloseimas. Tenho de levar pelo menos uma para cada familiar”.
Dona Maria Aparecida Rampinelli, que viajou de João Neiva (ES) a Valadares para o velório da mãe, também comprou alguns doces. Ela disse que as iguarias lhe ajudam a amenizar o sofrimento: “São os melhores doces da região”. Para entregar as iguarias e pegar o dinheiro, muitos doceiros precisam ficar na ponta dos pés e esticar as mãos.
Quando se trata de crianças, passageiros é que dão uma mãozinha: colocam metade do corpo para fora da janela dos vagões. É o que fez o auxiliar de expedição Davi Siqueira de Oliveira, de 58, toda vez que vai de Vitória, onde mora, a Governador Valadares, cidade em que a filha escolheu para viver. “Só esse ano é a terceira vez que faço a viagem. Adoro os doces da região. Não dá para ficar sem levar alguns”, comenta Davi. Além dos pé-de-moleque, crianças e adultos aproveitam a passagem do trem para ganhar alguns trocados com outras mercadorias.
Em Pedra Corrida, no Vale do Aço, onde o calor queima a pele de moradores e parte da plantação, Miguel Reis de Oliveira, de 14, grita bem alto para todos ouvirem que ele tem uma bacia com chup-chup de vários sabores: morango, laranja, abacaxi... “É só R$ 1. É só R$ 1”, repete o garoto, que cursa o 9º ano do ensino fundamental. Há quem vende água, pedaço de broa de fubá ou de bolo de chocolate.
É bom lembrar que o trem conta com um vagão-restaurante e um vagão-lanchonete. Além deles, comissários de bordos percorrem os vagões de passageiros com carrinhos carregados de água, refrigerante, salgados, doces etc.
ESTADO DE MINAS
Edição de 06/10/2013