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Cineasta destaca diversidade da atual produção nacional: “Estamos vivendo o melhor momento do cinema brasileiro”
Homenageado em Cannes, Cacá Diegues fala sobre sua carreira e seu processo criativo em entrevista exclusiva
A sede da produtora Luz Mágica, que o cineasta Cacá Diegues divide com a mulher, Renata Almeida Magalhães, no Centro do Rio, é um templo de adoração ao cinema. Cartazes de seus quase 40 filmes feitos até hoje se espalham pelos corredores que levam ao escritório principal, um altar repleto de estantes cheias de livros sobre cinema, TV, atores, audiovisual, diretores, formatos, técnicas, roteiros – só ele tem dez livros publicados. Ali, um animado Cacá recebeu a ANCINE para uma conversa sobre sua homenagem esta semana no Festival de Cannes, onde apresentará o filme “O Grande Circo Místico” como hors-concours, além da exibição de outras duas obras: “Bye Bye Brasil” e “Xica da Silva”.
Engana-se quem pensa que este que foi um dos fundadores do Cinema Novo vive como uma viúva dos bons tempos idos do cinema. Besteira, Cacá acha que a indústria do audiovisual brasileira nunca produziu tanto e com tantas visões, estilos e diversidades. É um entusiasta. Com um conhecimento enciclopédico da História do Cinema nacional e estrangeira, não perde de vista as mais atuais discussões no mercado, como a importância do streaming como plataforma de popularização do conteúdo audiovisual, apesar da feroz briga entre o Festival de Cannes, que o homenageia, e a gigante Netflix. Acha uma bobagem tentar minimizar a tecnologia.
Em duas horas de conversa, Cacá falou da sua homenagem, de seu mais novo filme, de seu processo criativo, sua relação com a favela, com atores, com montadores, com seus projetos audiovisuais e com os críticos. E se define como um cineasta do hoje. “Eu não sou um cineasta do passado e nem do futuro. Não fico passando a mão no que a gente foi e muito menos fico esperando o que eu vou ser. Eu gosto de ser o cineasta do presente”.
ANCINE: A respeito da homenagem em Cannes com o “O Grande Circo Místico” em sessão especial: você viu esse tributo chegando?
CACÁ DIEGUES: Para mim foi uma surpresa também. Eu mandei o filme para o festival e recebi de volta a notícia de que o filme não só tinha sido selecionado para uma exibição especial como era em homenagem a mim. Então eu fiquei muito feliz e liguei para ele ( para o delegado geral do Festival de Cannes, Thierry Frémaux ). Não teve mistério, não.
E como é que você encara essa homenagem? O que ela significa para você, pessoalmente?
Olha, homenagem, para mim, é um abraço, um beijo na boca, né? É um agrado que alguém está fazendo a você, então para mim é uma coisa agradável. É um festival tão importante! Mas eu também não me iludo, não. Não acho que isso aí signifique e nem quero que isso signifique uma espécie de homenagem final de carreira. Ainda vou viver muito ( risos ), vou fazer muito filme e não vejo assim, não. Agora, eu estou feliz. É uma honra para mim e eu vou lá recebê-lo ( o filme será exibido sábado, dia 12, em Cannes, juntamente com a homenagem ).
Antes de você...
Nelson. Nelson Pereira dos Santos foi homenageado alguns anos atrás ( em 2012, o cineasta foi homenageado pelo festival e seu filme “A Música Segundo Tom Jobim”, exibido em sessão especial ).
Você acha que muda alguma coisa ser homenageado assim em Cannes?
Será que muda muito? Eu acho que não. Ah, claro que muda alguma coisa, né? A pessoa fica mais valorizada, seus filmes são mais vistos, fala-se mais a seu respeito, mas não acredito que mude fundamentalmente alguma coisa, não.
E o que que te mobilizou a fazer “O Grande Circo Místico”?
É uma história meio complicada, porque na verdade, sou um fã de Jorge de Lima há muitos anos. Desde a minha adolescência que eu não paro de ler Jorge de Lima. Eu sou entusiasmado, acho mesmo que Jorge de Lima, depois de Camões, é o maior poeta da língua portuguesa. Então eu sempre quis fazer alguma coisa dele, mas nunca consegui ter a coragem de fazer nada porque quando você assume uma coisa para fazer, a partir de uma obra qualquer, você está assumindo compromisso com a obra. É bem difícil.
Quando acabei “O Maior Amor do Mundo” ( lançado em 2006 ), tive meio uma crise de depressão, passei meio mal. Estava em Los Angeles para participar do júri daquele festival de roteiros ( Los Angeles Screenplay Contest ) e passei muito mal. Eu me sentia deprimido, vazio, sem achar graça em nada. Percebi ali que tinha que fazer alguma coisa para reviver e pensei novamente em Jorge de Lima. Naquele momento, queria fazer qualquer coisa de Jorge de Lima.
Eu era muito amigo do dramaturgo e artista já falecido Naum Alves de Souza e o Naum tinha roteirizado um musical do “Circo Místico”. Eu tinha visto a gravação do vídeo e quando voltei ao Brasil, me deu uma luz: “é isso que eu tenho que fazer”. O “Circo Místico” já tinha uma trilha sonora linda composta por Chico Buarque e Edu Lobo e era Jorge de Lima, afinal de contas. Aí eu comecei a trabalhar.
Mas foi uma coisa interessante. “O Circo Místico”, o poema, tem 47 versos só e é um poema muito seco, com um final que não tem nada de extraordinário. É que ele está narrando o que aconteceu: ‘a imperatriz pegou a filha, o filho casou com a mulher, a mulher teve filho, etc.’ É só a narração daquela família e eu achei aquilo bom porque me permitia inventar coisas. Então comecei a trabalhar e a primeira coisa foi cuidar do roteiro, no sentido de preencher a história com coisas que não estavam naquele poema sem perder de vista o poeta. Comecei a escrever o roteiro em 2007 e só comecei a filmar em 2015. Foram oito anos fazendo o roteiro e me preparando para esse filme.
E esse tempo é um tempo normal no seu processo criativo?
Não, foi um excesso, um exagero. É claro que eu também não podia viver a minha vida só esperando para fazer esse filme. Neste meio tempo, dirigi e produzi três documentários (“ Rio de Fé”, “5X Pacificação” e “Favela Gay” ), produzi o filme para o José Wilker ( “Giovanni Improtta”, de 2013 ), produzi o filme dos meninos do “5X Favela – Agora por Nós Mesmos”, ou seja, eu trabalhei nesses sete ou oito anos em que estava escrevendo o roteiro. Mas na ficção, não conseguia pensar em mais nada que não fosse “O Circo Místico”. Fiz várias versões do roteiro com o George Moura até ficar satisfeito. E usei muita coisa do Jorge de Lima, sabe? Trechos de outros poemas, trechos dos romances dele, personagens que eram dele e que eu trouxe para o filme.
Eu ainda não vi o filme. Você usou a trilha do musical no filme?
Usei, mas em versões novas. Vamos dizer assim: duas músicas estão na versão clássica do disco. O resto é tudo readaptado e rearranjado.
Em Cannes vão passar também dois outros filmes seus, “Xica da Silva” e “Bye Bye Brasil”, sendo que “Bye Bye Brasil” já foi exibido em Cannes em mostra oficial. Por que você acha que foram escolhidos esses filmes e não outros? Eles dizem o que sobre a sua filmografia?
É curioso. “Bye Bye Brasil” é meu maior sucesso fora do Brasil, foi um filme que passou no mundo todo e até nas Coreias. “Xica da Silva” eu não sei, não é dos meus filmes mais exibidos no exterior, não, mas em compensação é o meu recordista de público no Brasil. Curiosamente, é o filme que mais fez sucesso aqui.
Você não conversou com ninguém sobre a razão de terem escolhidos esses filmes?
Não, nessas coisas não gosto de me meter porque dá errado. Isso eu deixo eles fazerem ( risos ).
Estava assistindo a “Cineastas”, no Prime Box Brazil, com o Bruno Barreto e ele falou uma coisa interessante: ele disse que, curiosamente, os filmes que ele achava que chegaram mais próximo dos filmes que ele realmente queria fazer, ou seja, os trabalhos que ele mais gostava, não eram os filmes que mais fizeram sucesso de público. E citou quatro filmes, incluindo “Flores Raras”, “Romance da Empregada” e tal. Isso acontece contigo também?
Não desse jeito. Primeiro acontece o seguinte: o filme que faz sucesso traz muita alegria, é um abraço que você ganha de uma porção de gente. Você fica feliz e quanto mais sucesso ele faz, mais você fica feliz, então “Bye Bye Brasil” e “Xica da Silva” são filmes que fizeram muito sucesso e me deixam muito feliz. Mas tem um filme ou outro que faz menos sucesso junto ao público e até mesmo junto à crítica que eu gosto mais. Daí eu me pergunto: ‘por que que o público não gostou desse filme? Que diabos! O filme é tão bom’. Era tão provável que o público gostasse, mas o público não gostou. E há filmes que são maltratados injustamente. “Joanna Francesa” é um exemplo disso. O filme foi bem de crítica, mas foi mal de público porque o público não foi ver e eu fiquei muito chateado porque eu achei que era um filme que merecia ser visto.
Para você qual é a importância para o cineasta em participar de um festival internacional? Isso é prestigio artístico? É RP? É netwoking? O que é para você, exatamente?
Olha, eu mesmo não sei. Recentemente, os festivais viraram um circuito alternativo para certos filmes que não estão no circuito comercial. Então, para que esse circuito tenha uma presença forte no mercado audiovisual internacional, eles adotam uma tendência. Berlim é mais político, Veneza é mais artístico, enfim, cada um escolhe a sua tendência para se firmar ali. Daí eu não sei explicar, porque tem uma comissão que seleciona os filmes, mas você não sabe direito porque um filme foi escolhido e outro, de mesma qualidade, não foi. Aí eu não sei explicar. O que a gente tem que tomar cuidado – e isso é algo a que eu sempre me refiro toda vez que posso - é não deixar esses festivais, esses concursos internacionais se tornarem juízes dos nossos filmes. Por exemplo: nenhum filme brasileiro ganhou um Oscar de filme estrangeiro, mas isso não tem a menor importância. Vai ser bom um filme brasileiro ganhar um Oscar. É claro que isso ajuda a cinematografia, o próprio cineasta, mas não legitima nem pode ser o Juízo Final da qualidade da produção que a gente fez. Isso não pode acontecer, entendeu? “O Grande Circo Místico” está no Festival de Cannes e eu não posso tornar esse festival a suprema ideia do que que deve ser o cinema, até porque se comete muitos equívocos também, muitos erros. A gente sabe disso.
Por outro lado, “O Grande Circo Místico” ( em sessão especial ) corresponde também ao momento em que o Brasil está precisando ser paparicado, ser homenageado, aparecer de uma maneira mais forte em Cannes. O cinema brasileiro já foi muito estimado, já passou muito em Cannes e de repente parou de passar. Já li alguns jornalistas afirmarem que o cinema brasileiro está em decadência. Agora veja, o cinema brasileiro nem começou a existir direito e já está em decadência? Então é isso que a gente não pode fazer: usar os festivais como a Corte Suprema da qualidade dos nossos filmes. Isso eu não aceito, não considero correto.
Mas é claro que quando você é aceito numa situação como essa, você tem que comemorar porque é muito bom, te promove, promove o filme, facilita a venda do filme para o produtor. Vou te dizer uma coisa que talvez te surpreenda. Desde que a gente recebeu a notícia de que o filme ia ser exibido em Cannes, a gente recebeu 17 propostas de exibições internacionais do filme. Olha que loucura. E isso é bom porque você fura uma barreira internacional que normalmente é muito difícil de furar. Então com a presença em Berlim, a presença em Veneza, você fura essa barreira. Mas repito: isso não significa que o meu filme é o melhor filme do ano, nem o melhor filme do mundo, talvez nem seja o meu melhor filme. Eu gostei muito do “Circo Místico”, ele é um bom filme e estou satisfeito com o que eu fiz, mas não considero que Cannes seja fundamental para dizer o que é, afinal, um filme meu.
Por que você acha que jornalistas dizem que o cinema brasileiro está em decadência?
Eu não sei. Eu acho que na verdade os jornalistas escolhem certos debates para poder ter assunto. É tipo ‘vamos agora esculhambar o cinema brasileiro para elogiar o argentino’ e depois é o contrário, uma espécie de roleta. Mas a gente tem que continuar fazendo nossos filmes, se possível com sucesso de público e de crítica, porque todo filme precisa alcançar isso, mas também não é obrigado.
Uma vez eu li uma entrevista sua e você dizia que ‘cada vez que eu vou fazer um novo filme eu procuro esquecer completamente o que eu fiz no outro’. Por quê?
Porque eu acho que você não pode ficar prisioneiro do que você já fez. Eu acho que, sobretudo no cinema, que é uma coisa muito volátil, você não pode ficar prisioneiro do que você era. Quando vou fazer um filme, procuro fazer com a euforia de um primeiro filme e a tristeza de um último filme, o entusiasmo do primeiro e a pressa do último. O que não quer dizer negar o passado. Eu tenho amigos que já viram “Circo Místico” e acharam parecido com alguns filmes meus anteriores. Tudo bem, mas eu não pensei nem tomei como referência esses filmes. E tem mais. Eu não sou um cineasta do passado e nem do futuro. Não fico passando a mão no que a gente foi e muito menos fico esperando o que eu vou ser. Eu gosto de ser o cineasta do presente, falar para meus contemporâneos, falar para as pessoas que vivem num momento terrível sobre o estado do mundo. Eu gosto de falar sobre o que eu sei falar.
Levando isso em consideração, como é que você escolhe um projeto cinematográfico?
Há duas formas fundamentais: a primeira é a do filme que é feito rapidamente. Você tem uma ideia, vai lá e faz. “Um Trem Para as Estrelas” foi assim. “Chuvas de Verão”, que eu gosto muito, também. Botei num papel e fui fazendo. E tem outros em que o processo é mais demorado, você passa muito tempo pensando sobre o filme, sobre o projeto até que, em determinado momento, ele acontece. Foi assim com “Orfeu”, “Quilombo” e com o próprio “Grande Circo Místico”, que eu levei sete anos para fazer.
Uns são longos partos e outros, partos súbitos
Exato. Às vezes você tem a concepção do filme rapidamente, ele é barato, então você consegue fazer logo. Outros não. Há dificuldades no roteiro ou a produção é cara e você precisa esperar para ter condições de fazer. Isso é engraçado porque me faz lembrar que “Orfeu” foi um dos filmes que eu mais demorei a fazer: levei uns 30, 40 anos. Eu assisti à estreia de “Orfeu da Conceição” no Theatro Municipal (do Rio de Janeiro), eu tinha 16 anos e meu pai tinha dois ingressos. Adorei aquilo, chorei, foi um acontecimento na minha vida. Inclusive posso dizer que foi uma coisa muito estranha, porque a cultura da favela, naquela época, era uma coisa totalmente marginal e inexistente. De repente, você vê aquela cultura que não existia no palco do Theatro Municipal com sambas lindos do Tom Jobim e Vinicius, cenários do Niemeyer, uma coisa extraordinária, além de todo um elenco de negros. Foi uma coisa que me abalou muito.
E para época, bem revolucionaria
Bem revolucionaria. E foi na mesma época em que vi ”Rio 40 Graus”, então você imagina como ficou minha cabeça. Porque eu odiei aquele filme do Nelson (Pereira dos Santos), considerei uma traição à favela, uma traição àquela cultura que eu vi festejada no Municipal, tratada como se fosse uma mentira. Aí em 1959, já tinha 19 anos, eu pensei: ‘um dia eu vou ser cineasta e vou fazer esse filme’. E fui fazer com meus cinquenta e tantos anos de idade. Quando “Bye Bye Brasil” fez sucesso internacional, a Globo me ofereceu para eu fazer o filme que eu quisesse com determinado orçamento e eu fui fazer “Orfeu”. Me preparei todo, comecei a trabalhar com o Vinicius de Moraes e o menino morre. Aí só fui fazer “Orfeu” em 1999. Tem filme que demora. Então a verdade é que não tem regra. Se a gente criar uma regra para cinema, para qualquer arte, poesia, o que for, estamos impedindo a pessoa de pensar livremente.
As pessoas têm criticado Cannes em sua relação conflituosa com os conteúdos da Netflix. Qual é a sua opinião sobre o streaming e a obrigação imposta pelo festival de que os filmes sejam exibidos em cinema?
Eu acho que colocar o streaming como algo que vai acabar com o cinema é de uma burrice enorme. O cinema nada mais é do que uma plataforma da família do audiovisual que surgiu em 1895 na França e depois se transformou. Teve o cinema mudo, falado, colorido e sempre que aparecia uma novidade tecnológica, falavam: “isso não é mais cinema”. Besteira. Tudo que for audiovisual é cinema. Você não pode rejeitar o streaming porque é estar contra a evolução do audiovisual. Eu acho o streaming formidável. Nunca trabalhei com a Netflix, não sei se é má ou boa produtora, mas não tenho nada contra. Eu li muito sobre cinema e me lembro de disputas do passado, como quando o cinema se tornou falado. Aqui no Brasil tinha um grupo de pessoas, que incluía o grande Vinicius de Moraes, que era contra o cinema falado e dizia que aquilo não era cinema. Cada vez que você avança, há uma pessoa para te mandar ficar onde está ( risos ). Eu acho errado. Eu quero que o filme seja visto nas salas de cinema, na TV e no streaming. Isso não modifica em nada a linguagem do cinema.
E como você vê a discussão sobre a regulamentação do Vídeo Sob Demanda no país?
Não posso te dizer que tem que haver regulamentação desse jeito ou de outro porque sou meio ignorante sobre a tecnologia, mas tem que ter regulamentação. Não pode ser terra de ninguém. E penso que a regulamentação tem que ser o mais suave possível para não impedir o avanço da cultura e da tecnologia. Eu digo sempre que a tribo que inventou o automóvel deve ter deixado o dono da sapataria muito danado da vida, por que ele passou a vender menos sapatos ( risos ).
Falando da sua cinematografia, gostaria de saber se você tem algum método para trabalhar com atores e o que te faz escolher determinado ator.
Eu escolho os atores quando escrevo o roteiro. O ator nasce junto com o roteiro. Às vezes não dá para fazer o filme com determinado ator por conta de agenda, mas eu tenho na minha cabeça a cara da pessoa para determinado personagem. Ator é que nem qualquer outra pessoa: um é alegre, o outro é triste, um nasce no Rio e outro em São Paulo, então quando eu trabalho com um ator pela primeira vez eu procuro entender que pessoa é aquela. E atuação em si é função de cada um, porque também não vou forçar uma barra para que essa pessoa vire outra pessoa. Eu já troquei de ator porque ele estava tentando ser outra pessoa. Outro ponto: muitas vezes, no elenco, eu trabalho separadamente um ator. Tem filme em que eu falo uma coisa com o elenco e com um ator, outra. Teve um filme em que os atores principais eram completamente diferentes entre si e se eu falasse com os dois ao mesmo tempo, um não iria entender a proposta. Tenho que trabalhar com quem eles são. Cada ator é diferente.
Para você, qual é a importância do roteirista?
Eu acho o roteirista fundamental. Truffaut disse uma vez que você tem que fazer sempre três filmes: o do roteiro, o da filmagem e o da montagem. Então, quem é importante, nesse processo, são o roteirista, o fotógrafo e o montador. Essas três pessoas são fundamentais na produção de um filme e muitas vezes salvam o diretor.
Você falou sobre etapas do filme. Você trabalha essas etapas em separado, desenvolvendo-as ao longo do processo, ou você já tem tudo mais ou menos amarrado na cabeça de antemão?
É claro que quando você vai fazer um filme você tem ideia do que quer. Você formula o projeto e trabalha pra burro no roteiro, na preparação dos atores, na fotografia. Na montagem, no entanto, eu tenho uma ideia, mas uma vez que ela começa, o processo passa para o montador. Posso até dar palpite, mas ele está na minha frente, porque ele sabe tudo que eu quero. Agora, para o filme ficar exatamente como eu planejei, só com um milagre, porque o realizador esbarra em muitas dificuldades. São tantos obstáculos que você tem que passar para fazer um filme que não é possível que em pelo menos um deles você não seja obrigado a fugir da sua ideia inicial. Isso em relação a tudo: atores, produção, roteiro. Além disso, há duzentas maneiras de se filmar e aí perguntam: como você vai filmar isso? ( risos ) Por isso é importante ter uma equipe que participa dando ideias. O diretor dá o conceito do filme e não pode errar nisso. Mas uma vez acertado o conceito, o diretor não pode se achar o dono do filme.
Quais foram suas influências cinematográficas lá atrás e quais nomes você acha hoje os mais interessantes no audiovisual?
Antes de ser cineasta, eu sou cinéfilo, o que significa que vejo filme pra burro. Eu vejo pelo menos um filme por dia até hoje. Ao mesmo tempo, me formei como cineasta em uma época em que bastavam três meses na cinemateca de Paris e, visto uns 200 filmes, você matava a História de cinema. Hoje em dia, você teria que ficar no mínimo três anos na sala de projeção. Então é muito difícil ver tudo que está sendo feito. E, ao mesmo tempo, é necessário que se veja. Por exemplo: eu andei interessado no cinema romeno. E descobri que, vendo três ou quatro filmes, estava resolvido. Mas quando eu descobri a História do cinema no Brasil, eu já tinha feito uns três longas-metragens ( risos ). Eu fui da geração que aprendeu fazendo e vendo, fazendo e vendo filmes. Não tinha escola. Havia um sistema de colaboração que era uma maneira de superar a ignorância. Então minha formação foi pouco exemplar, e hoje em dia você não precisa fazer assim. Quando eu comecei a fazer cinema, além de você poder aprender a história do cinema em dois ou três meses, você só podia ver filmes em salas de cinema. Não tinha televisão, não tinha DVD, não tinha internet. E para ver na sala de cinema, você não via os filmes antigos, porque não passavam mais. O que me salvou, e à minha geração, foi que no final dos anos 50 e início dos anos 60, o Museu de Arte Moderna do Rio fez cinco anos de festivais internacionais. Começou com cinema americano, teve cinema francês, italiano, inglês e russo. Nesses cinco anos, eu vi tudo que eu tinha que ver. Foi assim que eu entendi o que era cinema. Eu lia sobre os filmes de Serguei Einsenstein e de repente, vi. Então toda aquela literatura se transformou em prática. Eu lembro quando vi o “O ferroviário” ( filme italiano com direção de Pietro Germi) e aquilo foi uma descoberta. Saímos da sessão eu, Glauber e Ruy Guerra e nós viemos conversando. Nós saímos da Rua Araújo Porto Alegre ( rua localizada no Centro do Rio ) e fomos até Ipanema andando e discutindo o filme. Era um amor febril pelo cinema. Era uma descoberta. Era como se tivesse salvo a vida da gente. Hoje você entra em uma escola de cinema, aprende e está feito. Na época, não tinha faculdade de cinema nem nada. Eu estudava na PUC, fazia direito, e nós conseguimos trazer o ( historiador e crítico de cinema ) Paulo Emílio ( Sales Gomes ) para fazer uma semana de palestra. Era muito interessante porque a gente vivia em torno dos cineclubes, né? E a coisa mais importante do cineclube não é o filme que está passando, mas o debate depois ( risos ).
E debatia-se muito, né?
Sim. Era cada cacetada... defendendo ou atacando o filme ( risos ).
Para você, quem são os grandes nomes hoje da produção audiovisual no Brasil?
Eu acho que no Brasil, a gente está tendo uma experiência de audiovisual muito boa. Veja bem, eu falei agora há pouco do Cinema Novo, mas nós éramos oito ou nove. Primeiro filme que eu fiz foi o curta “Fuga”, em 1959. Nesse ano, seis filmes brasileiros foram feitos. Hoje em dia você tem a produção de 140 a 160 filmes por ano, uma juventude fazendo filme no país inteiro. A questão da idade também: você não precisa ser um velho para ter o direito de filmar. E o mais importante: uma grande diversidade.
Eu estava lendo as críticas que você fazia junto com o Glauber Rocha e o (Arnaldo) Jabor ao cinema brasileiro desde a década de 50. Muita coisa mudou de lá para cá?
Nós estamos vivendo o melhor momento do cinema brasileiro. O Cinema Novo, que eu tenho muito orgulho de ter feito parte, e que mudou a história do cinema brasileiro, era uma coisa trancafiada em nove ou dez caras. A minha fé era que o movimento fosse suficientemente forte para se firmar. Hoje você tem uma grande diversidade. Essa diversidade está acontecendo pela primeira vez. Mas você sabe que tem muita gente que adora falar mal do cinema brasileiro, né ( risos ).
Aproveitando esse gancho, porque ainda temos problema de bilheteria no cinema nacional? É uma questão de escoamento de mercado ou do público que adotou o padrão americano como referência?
É uma história complicada que não vamos resolver em dois ou três minutos. Eu acho o seguinte: a qualidade do cinema brasileiro não é necessariamente o principal motivo para sucesso comercial do cinema brasileiro. O sucesso comercial do cinema brasileiro é relativo há muitos anos: foi bom uma época, e ruim em outra. Eu acho que estamos vivendo um momento em que há um certo sentimento não só contra o cinema brasileiro, mas contra o Brasil e contra as coisas brasileiras, sentimento acirrado pela crise na população. A reação ao que é brasileiro é muito forte. Os caras preferem nem ver o filme. Em segundo lugar, embora o custo do cinema no Brasil não seja caro comparado ao do resto do mundo, ainda é muito caro. Hoje em dia, para você ir ao cinema com uma companhia, você gasta metade do salário mínimo. Quem pode pagar isso? Temos a Coca Cola mais cara do mundo, a pipoca que se vende em bacias e os ingressos são caros. A Globo ano passado, passou 180 filmes brasileiros. Claro que muitos na madrugada, mas também em outros horários. Se você for um operário, que ganha um salário mínimo, e quer se divertir, o que você faz? Vê televisão. Você não vai para o cinema. Então, há esse outro motivo para a falta de repercussão do cinema brasileiro: você não sai de casa porque não tem dinheiro para ir no cinema. Quando eu fiz “5x favela” eu pedi para botar em salas perto de favela. E não foi ninguém. Em terceiro lugar: eu tenho problemas com distribuidoras brasileiras que têm vergonha do cinema brasileiro. Isso tem até hoje. Não são todas, mas tem muitas distribuidoras que não tem muito respeito pelo cinema brasileiro. Não gostam e ainda tem vergonha.
Exibidoras também?
Exibidoras são vítimas das distribuidoras. O exibidor é o pretexto que o distribuidor tem para não passar certos filmes.
Você acha que é o papel do Estado estar na produção audiovisual?
A gente não vive sem o Estado. Eu acho que nenhum cinema no mundo, incluindo o americano, vive sem o Estado. Evidentemente há nuances. O cinema americano precisa menos do Estado do que o cinema chinês ou tailandês. Mas não existe no mundo um cinema que não precise do Estado, ou em forma de lei, regulação ou financiamento. Cada país escolhe seu modelo, e o Brasil ainda não decidiu o seu. Estou esperando que o Christian de Castro faça isso na ANCINE ( risos ). Precisamos de um modelo que seja factível e perene.
Você considera que vídeogame está dentro da indústria do audiovisual?
Sim. É claro que tem que ser tratado de uma maneira diferente do cinema, mas acho que faz parte da cadeia do audiovisual, sim.
Historicamente, o cinema e a televisão brasileira, não se conversavam. Hoje por conta do streaming, há uma conversa intensa entre TV e cinema. Você acha que estamos vivendo uma época em que há de fato troca entre pessoas que transitam nesses dois meios de forma mais permanente ou é uma questão passageira?
Como no resto do mundo, o cinema brasileiro não terá a menor chance se não estiver associado à televisão. A televisão e o cinema têm a mesma origem. De certo modo o cinema brasileiro aprendeu a falar com a televisão. Houve um crítico nos anos 50 que dizia que o cinema brasileiro nunca ia dar certo porque a língua brasileira não era cinematográfica. Eu acho que a televisão ajudou a libertar o cinema de certas ideias equivocadas. Assim como o cinema colaborou muito com a televisão. O projeto do cinema brasileiro ajudou a televisão a se nacionalizar. Não tem como escapar. Eu acho que a gente está conseguindo isso na Globo Filmes. E com diversidade. Tem que botar a rapaziada para trabalhar ( risos ).