Notícias
PROMOÇÃO DA SAÚDE
Lei que torna crime a discriminação contra pessoa vivendo com HIV ou aids completa 10 anos
Este mês, completam-se 10 anos que o Brasil tornou a discriminação contra pessoas vivendo com HIV ou aids um crime. Um marco na resposta brasileira ao HIV, a Lei n°12.984/14 está alinhada aos programas estratégicos para eliminar o estigma e a discriminação relacionados ao HIV do Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV e Aids (Unaids).
A norma prevê punição de reclusão de um a quatro anos e multa, em casos de condutas discriminatórias contra pessoas vivendo com HIV ou aids, tais como: recusar ou impedir a permanência de estudante em estabelecimentos de ensino; negar, exonerar ou demitir de emprego; segregar em ambiente de trabalho ou escolar; divulgar a condição da pessoa com HIV ou aids com intuito de ofendê-la; e recusar ou retardar atendimento de saúde.
O enfermeiro Bruno de Jesus Daloy, especialista em Gestão de Políticas Públicas para a Saúde, descobriu que havia sido infectado pelo HIV durante a pandemia de covid-19. Enquanto ainda lidava com a informação de sua nova condição de vida, ele teve o seu diagnóstico exposto no trabalho, mesmo local em que realizava o tratamento. O ambiente que deveria ser um local seguro, acabou contribuindo para que Bruno se sentisse ainda mais vulnerável. O enfermeiro teve de ser realocado para uma outra unidade, mais distante de sua residência e, pouco depois, foi informado de que o contrato de trabalho não seria renovado.
Apesar de conhecer a lei, ele optou por não denunciar, pois estava com receio da exposição. “Eu nunca denunciei, porque quando você decide lançar mão da lei e levar isso à frente, você ainda precisa carregar outro fardo. No momento em que você vai fazer essa denúncia, precisa ter a ciência de que a sua exposição ainda vai continuar, ainda mais em uma cidade de 24 mil habitantes. Se eu fosse até a polícia, o conhecimento da minha sorologia seria muito maior nos outros lugares, na cidade”, desabafou.
Além de perder o emprego, Bruno foi ameaçado pela pessoa com quem se relacionava na época, pois a pessoa soube que ele vivia com HIV pela situação discriminatória sofrida no ambiente de trabalho. Bruno já realizava o tratamento adequado e estava com o vírus indetectável. Conforme a Organização Mundial da Saúde (OMS), pessoas que vivem com HIV, mas estão com carga viral indetectável, não transmitem o vírus para suas parcerias sexuais. Por isso, é importante que todas as pessoas tenham acesso ao tratamento e a essa informação.
Já o estudante de medicina da Universidade de Brasília, Lucas Pucarato, relatou que já sofreu dois episódios distintos de exposição vexatória por viver com HIV. Ele contou que realizou a denúncia em ambas as situações, mas, devido à morosidade do processo, ele também se sente lesado pela Justiça, que prorroga esse sofrimento. “Querendo ou não, quando passamos por alguma situação de injustiça ou de violência, nesse sentido, queremos algum tipo de reparação em relação à dor que a gente sentiu. Nós queremos ser tratados com respeito e dignidade”, explicou.
Para Lucas Pucarato a lei não serve apenas para punir, mas também desempenha um papel importante na educação da população brasileira. “Do ponto de vista individual, já enfrentei, mas pela ótica coletiva, no sentido pedagógico, o que essas punições fazem, que para mim é o sentido principal da lei, é ensinar, transformar a sociedade, por isso, é importante denunciar e manter o processo até o fim”, afirma.
A consultora técnica do Departamento de HIV, Aids, Tuberculose, Hepatites Virais e Infecções Sexualmente Transmissíveis (Dathi/MS), Carliane Freire, explica que caso uma pessoa sofra as ações discriminatórias previstas na lei, ela poderá procurar um(a) advogado(a) ou a Defensoria Pública para receber orientação jurídica específica. Segundo ela, também é possível buscar apoio junto a organizações não governamentais que se dedicam à defesa dos direitos humanos e contra a discriminação. Outra alternativa orientada pela consultora é a possibilidade de realizar uma representação contra a pessoa que cometeu o ato discriminatório junto ao Ministério Público, uma vez que o Órgão detém autoridade para investigar e processar casos de discriminação e violações de direitos humanos.
Além de oferecer proteção legal às pessoas, permitindo que elas busquem reparação por danos morais e materiais em casos de discriminação, a lei também promove a conscientização da população sobre HIV e aids, e é uma ferramenta que possibilita prevenir a discriminação por meio de campanhas educativas e sensibilização.
O diretor do Departamento de HIV, Aids, Tuberculose, Hepatites Virais e Infecções Sexualmente Transmissíveis da Secretaria de Vigilância em Saúde e Ambiente do Ministério da Saúde, Draurio Barreira, explica que um dos principais desafios para a eliminação da aids como problema de saúde pública no Brasil, bem como da eliminação da transmissão vertical de HIV – da gestante para o bebê – perpassa por barreiras de acesso aos cuidados de prevenção, diagnóstico e tratamento disponibilizados gratuitamente pelo Sistema Único de Saúde (SUS) relacionadas, em geral, a questões de estigma e discriminação.
“Temos todas as tecnologias para garantir a qualidade de vida das pessoas que vivem com HIV ou aids, está comprovado cientificamente que o tratamento é eficaz a ponto de, ao ser alcançada a supressão viral, haver risco zero de se transmitir HIV por relações sexuais. Contudo, infelizmente ainda temos muito preconceito, desinformação e discriminação – inclusive por parte de profissionais da saúde. Precisamos enfrentar isso de forma estrutural e intersetorial, sem esquecer conquistas que podem fazer diferença nas nossas ações, como é o caso da Lei antidiscriminação de pessoas vivendo com HIV ou aids”, afirma o diretor.
Estigma e discriminação
Segundo o Unaids, o estigma e a discriminação estão entre os principais obstáculos para prevenção, tratamento e cuidado em relação ao HIV. O Programa define a discriminação como tratamento desigual e injusto contra pessoas vivendo com HIV, e se baseiam em atitudes ou crenças estigmatizantes. Dessa forma, a sanção da lei visa garantir o direito de uma vida digna e acesso à saúde pela população que vive com HIV ou aids.
Nesse sentindo, enquanto profissional da saúde, Bruno de Jesus Daloy expõe a importância de que os serviços de saúde pensem não somente no tratamento das pessoas vivendo com HIV, mas também em como proporcionar qualidade de vida e realizar um atendimento respeitoso em todos os processos. “Infelizmente, ainda existem muitas barreiras de acesso e segregação nos serviços de saúde. Trabalhando na UTI [Unidade de Terapia Intensiva], já vi profissionais de Medicina, Enfermagem e Fisioterapia evitando atender pessoas com HIV por medo de se infectar”.
Ele também alerta para os preconceitos enfrentados pela população LGBTQIAPN+ nos serviços de saúde. De acordo com o enfermeiro, muitos profissionais se precipitam ao encaminhar essas pessoas para serviços especializados de HIV e aids, supondo que a única forma de cuidado é por meio de testagem e medicamentos, mas esquecendo do princípio da promoção do cuidado integral à saúde.
Para Lucas Pucarato, são necessárias políticas públicas para reparar os danos do estigma negativo criado nos primeiros anos da epidemia de HIV e aids no Brasil, com o reforço de alguns setores da mídia. “Até hoje vivemos com o resultado desse estigma que foi criado sobre pessoas vivendo com HIV. O movimento social está há quase meio século trabalhando para levar informações para a sociedade e tentar desfazer esse estrago”.
Por ser ativista do tema, Lucas já consegue falar abertamente sobre viver com HIV, mas ele sonha que toda a sociedade consiga falar sobre o vírus de uma forma mais leve, como uma condição crônica manejável. “Espero que um dia a gente consiga ter a saúde de uma forma integral, comparável ao resto da população. Que a gente possa falar dessa condição igual às pessoas que vivem com diabetes, por exemplo, sem medo, sem vergonha e sem receio de sofrer violência por isso”.
HIV e aids
Embora o primeiro caso relatado de aids tenha ocorrido há mais de 40 anos, muitas pessoas ainda desconhecem a diferença entre a doença e o HIV. O vírus da imunodeficiência humana (HIV) é um retrovírus que ataca o sistema imunológico, principalmente os linfócitos T CD4+. Muitas pessoas com infecção pelo HIV podem viver anos sem apresentar sintomas ou desenvolver a síndrome da imunodeficiência adquirida (aids).
O SUS disponibiliza, de forma gratuita, insumos de prevenção, diagnóstico e tratamento para HIV e aids. Para que seja realizada de forma eficaz, o Ministério da Saúde preconiza a prevenção combinada, ou seja, a associação de diferentes estratégias de prevenção ao HIV, em uma perspectiva voltada à saúde integral das pessoas. Entre os métodos que podem ser combinados estão a testagem regular; a prevenção da transmissão vertical durante o pré-natal e a amamentação; o uso de profilaxias pré e pós-exposição; e, o tratamento para todas as pessoas que vivem com HIV ou aids.
De acordo com o último Boletim Epidemiológico HIV e Aids, publicado pelo Departamento de HIV, Aids, Tuberculose, Hepatites Virais e Infecções Sexualmente Transmissíveis (Dathi/SVSA/MS), em 2022 foram registrados 36.753 casos de aids e 43.403 novos casos de HIV. No mesmo ano, foram notificados no país 7.943 gestantes/parturientes/puérperas infectadas pelo vírus.
É importante lembrar que o HIV não é transmitido por aperto de mão, abraço, assento de ônibus, talheres, copos, pelo ar, nem por suor ou lágrima. As principais formas de transmissão são por meio de relação sexual sem preservativo, compartilhamento de seringas, instrumentos perfurocortantes não esterilizados e por transmissão vertical – durante a gravidez, parto ou amamentação.
Lorany Silva e Ádria Albarado
Ministério da Saúde