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Direitos Humanos
Brasil reconhece violação de direitos e pede desculpas a comunidades quilombolas de Alcântara (MA)
O Estado Brasileiro reconheceu, de forma oficial, que violou os direitos de propriedade e de proteção jurídica das comunidades quilombolas de Alcântara (MA). A admissão ocorreu hoje (27/04) durante audiência pública da Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), em Santiago, Chile. Na mesma audiência, o país fez um pedido de desculpas formal aos quilombolas do município maranhense, e informou ao Tribunal que as escusas constarão de declaração pública que será divulgada e permanecerá disponível durante um ano em página oficial do governo federal.
A posição brasileira mostra uma guinada no entendimento sobre o caso, e reflete as diretrizes do atual governo de buscar uma solução definitiva para a questão que assegure os direitos das comunidades ao território e, ao mesmo tempo, possibilite a continuidade do Programa Espacial Brasileiro (PEB), por meio do desenvolvimento do Centro de Lançamento da Alcântara (CLA).
O novo posicionamento do Estado brasileiro foi manifestado pelo advogado-geral da União, Jorge Messias, a quem coube a realização das alegações orais perante a CIDH. “Como consequência dessa violação, e ciente da natureza própria de que se revestem as medidas de reparação por violações ao direito internacional, em nome do Estado brasileiro manifesto nosso mais sincero e formal pedido de desculpas à senhora Maria Luzia, ao senhor Inaldo Faustino e aos demais membros das comunidades quilombolas de Alcântara”, afirmou Messias em seu pronunciamento, com menção aos declarantes do caso que participaram da audiência.
Em suas alegações, Messias também informou à Corte algumas das medidas concretas já tomadas, e em curso, pelo Estado brasileiro no sentido de atender aspectos, apontados no relatório da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, que mostraram a existência de violações de prerrogativas dos quilombolas. A principal delas, a criação de um Grupo de Trabalho interministerial, formalmente constituído ontem, pelo presidente da República, por meio do Decreto n. 11.502/2023.
Coordenado pela Advocacia-Geral da União (AGU), o Grupo de Trabalho terá o objetivo de buscar soluções para a titulação territorial das comunidades remanescentes de quilombos. Com a participação de representantes de 13 órgãos governamentais e dos quilombolas, o Grupo deverá concluir os trabalhos em até um ano. Por determinação do presidente da República, após o término das atividades do grupo, a titulação progressiva das terras pertencentes à União deverá ocorrer em até dois anos após a publicação da portaria de reconhecimento territorial.
Adicionalmente, de acordo com o decreto, o Grupo também deverá formular proposta de ato normativo que regulamente o protocolo de consultas prévias, livres e informadas às comunidades remanescentes de quilombos, em harmonia com a Convenção n. 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Tal mecanismo é uma obrigação do Estado brasileiro de perguntar, adequada e respeitosamente, aos povos originários sobre sua posição quanto a decisões do Poder Público capazes de afetar suas vidas e seus direitos. Trata-se da implementação de uma prerrogativa dos povos a serem consultados e participarem, por meio de diálogo intercultural, de decisões estatais.
Compensação financeira
Na parte inicial das alegações, o advogado-geral da União ressaltou aos juízes da Corte que a análise do caso era uma oportunidade única para o Brasil reencontrar o passado e projetar o seu futuro. Lembrou dos traços escravocratas que orientaram a formação do país desde o descobrimento. Falou sobre o reflexo desse passado sobre as atuais gerações, incluindo os efeitos nefastos da desigualdade racial ainda presente na sociedade brasileira.
Jorge Messias destacou também os avanços na proteção dos direitos das comunidades afrodescendentes ocorridos a partir da promulgação da Constituição de 88, com a adoção de medidas executivas, judiciais e legislativas que garantiram o efetivo exercício de direitos previstos na Carta Magna.
Ele sublinhou a recente criação, pelo atual governo, do Ministério de Igualdade Racial, pasta que criou, em sua estrutura, uma secretaria dedicada à promoção de políticas públicas específicas para as comunidades quilombolas e, ainda, destinadas à superação da desigualdade racial.
Durante sua exposição, o advogado-geral informou à Corte que o governo federal está comprometido em viabilizar a destinação de recursos financeiros para compensação das violações. Esses recursos serão destinados à implementação de políticas públicas que beneficiem diretamente as comunidades em entendimento com seus representantes. O objetivo, explicou ele, é viabilizar montante financeiro, equivalente ao valor solicitado pelas comunidades, a título de reparação coletiva. Como contrapartida, o Estado brasileiro espera que os quilombolas reconheçam perante o Tribunal o atendimento integral de seu pedido, com o consequente pronunciamento da Corte IDH de que a medida de reparação foi plenamente atendida.
Para Jorge Messias, o reconhecimento realizado hoje, perante a Corte Interamericana, mostra, com o anúncio das medidas tomadas, o respeito do Estado brasileiro à jurisdição do Sistema Interamericano de Direitos Humanos e o compromisso inequívoco do atual governo de resolver uma controvérsia de mais de quatro décadas. “Estou seguro de que demos hoje um passo histórico. Mostramos à Corte, com atos concretos, nossa disposição de resolver o caso”, disse. “Vamos agora trabalhar para mostrar que é plenamente possível chegar a uma solução que respeite os direitos dos quilombolas à sua terra e suas tradições e que assegure o desenvolvimento do nosso Programa Espacial”, completou.
Além de Messias, participaram das alegações finais representantes dos ministérios dos Direitos Humanos e Cidadania (MDHC) e das Relações Exteriores (MRE). O embaixador do Brasil no Chile, Paulo Roberto Soares Pacheco, fez a introdução as alegações finais orais do Estado brasileiro. A secretária-executiva do MDHC, Rita Cristina de Oliveira, destacou a prioridade da política do atual governo com a titulação de áreas quilombolas por meio do programa Aquilomba Brasil. O secretário de assuntos multilaterais políticos do MRE, embaixador Carlos Cozendey, reforçou o compromisso internacional do Brasil com a proteção dos direitos humanos.
A audiência pública da CIDH ocorreu na sede do Tribunal Constitucional do Chile, em Santiago. No caso sob análise, após as alegações orais e oitiva de testemunhas realizadas hoje e ontem, haverá ainda a fase de alegações finais escritas. Ainda não há prazo definido para a prolação da decisão final da Corte.
Sobre a Corte
A Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) é um dos três tribunais regionais de proteção de direitos humanos, juntamente com as cortes Europeia e Africana de Direitos Humanos. É uma instituição judicial autônoma cujo objetivo é aplicar e interpretar a Convenção Americana, também conhecida como Pacto de São José da Costa Rica - tratado internacional que estabelece direitos e liberdades que devem ser respeitados pelos Estados-parte, dentre os quais se inclui o Brasil. O Tribunal exerce competência contenciosa, o que confere a atribuição de resolução de litígios e supervisão de sentenças. Também exerce função consultiva, além de proferir medidas provisórias.
A Convenção Americana estabelece que a Comissão Interamericana e a Corte IDH são órgãos competentes para conhecer de assuntos relacionados ao cumprimento de compromissos contraídos pelos Estados Partes signatários do tratado.
Sobre o caso
O caso refere-se à suposta afetação da propriedade coletiva de 152 comunidades quilombolas localizadas em Alcântara (MA), devido, entre outras questões, à suposta falta de titulação das terras por elas ocupadas, à instalação do Centro de Lançamento de Alcântara (CLA) e à falta de consulta prévia dessas comunidades quanto a medidas estatais que lhes afetem. Também trata da suposta falta de recursos judiciais para remediar tal situação. Segundo informações extraídas do caso, em 12 de setembro de 1980 foi declarada como sendo de “utilidade pública” uma área habitada por 32 comunidades quilombolas. Promovida pelo Estado brasileiro, a desapropriação da área foi feita com o objetivo de implementar o CLA, e desenvolver o programa espacial brasileiro. Essas comunidades quilombolas foram reassentadas em sete agrovilas, enquanto o restante das comunidades da região continuou em seus territórios tradicionais.
Em relação a essas últimas, a Comissão observou que, apesar das ações realizadas para obtenção de títulos de propriedade coletiva de suas terras e territórios tradicionais, as comunidades não têm conseguido usar e usufruir delas de maneira pacífica . Em relação às comunidades das agrovilas, a Comissão indicou que elas não possuem título de propriedade de suas terras e territórios, e que o processo de reassentamento não teria cumprido os parâmetros exigidos pelo direito internacional. Além disso, observou que o Estado brasileiro descumpriu suas obrigações internacionais com a construção do CLA e o reassentamento das 32 comunidades quilombolas, ao não ter garantido que as restrições ao direito de propriedade respeitassem o direito à propriedade ancestral dos quilombolas. Também observou que não foram realizados estudos ambientais e sociais adequados, o que gerou um processo de reassentamento com graves deficiências.