Notícias
ARTIGO
Tolerância Religiosa e Cultural no Brasil - Legado às Gerações Futuras
Imagem: ASCOM/AGU
A Liberdade de crença é pedra fundamental dos Estados verdadeiramente democráticos. Um anseio compartilhado pela raça humana desde os tempos mais remotos, embora nos tempos mais remotos o direito à liberdade religiosa tenha sido largamente negligenciado. A história da humanidade acolhe inúmeros registros de violência e das práticas das piores atrocidades em nome da religião e por causa dela.
Essa realidade de perseguição implacável contribuiu para que milhares de europeus deixassem o continente na esperança de que em uma terra recém-descoberta pudessem professar livremente suas crenças, seus Deuses e eventualmente seus santos.
Uma dessas viagens ficou marcada na História por ter iniciado a povoação de um pedaço de terra que viria a se transformar no que hoje é um importante centro cultural e político dos Estados Unidos, o Estado de Massachusetts. Movidos principalmente pela esperança da liberdade de religião, um grupo (aproximadamente 130 pessoas) de puritanos ingleses[1] embarcou no navio Mayflower, que viria a se tornar sinônimo da “fundação” da liberdade religiosa na América, porque foi nele que se redigiu um documento - o Mayflower Act - antes da chegada em terra firme, que plasmou a tolerância religiosa entre os pactuantes.
Do Mayflower Act de 1620 à Primeira Emenda à Constituição dos Estados Unidos, que integra o Bill of Rights, proposto em 1789 e que entre outras garantias assegura a Liberdade Religiosa, o mundo aprendeu, à custa de muito sacrifícios, conviver e respeitar as diferenças no tocante às crenças. Um aprendizado longo, doloroso e que ainda reclama constante atenção.
O Brasil caminhou lentamente no sentido de assegurar a liberdade religiosa, assim como na libertação dos escravos. A “Constituição Política do Império do Brazil”, nome oficial da Constituição de 1824, instituiu religião oficial (a Católica Apostólica Romana, art. 5[2]), limitou a prática de outras religiões ao ambiente doméstico ou particular, sem forma externa de templo (art. 5), condicionou a elegibilidade (exercício do cargo de deputado) àqueles que professavam a fé católica (art. 95, III) e, por fim, estabeleceu que ninguém poderia “ser perseguido por motivo de Religião, uma vez que respeite a do Estado”, e desde que “não ofendesse a Moral Publica” (art. 179, V). Ou seja, se a autoridade pública, que obrigatoriamente teria que ser da religião oficial, entendesse que o adepto de uma outra religião ao praticá-la ofendia a moral pública, poderia persegui-lo.
A Constituição de 1891, inspirada na Constituição estadunidense, afastou a figura da religião oficial, adotou o laicismo, contudo, não avançou para assegurar liberdade mais ampla nesse quesito.
O grande salto da liberdade religiosa no Brasil viria a ocorrer somente com o pós-guerra, e coube ao então Deputado Constituinte Jorge Amado, do Partido Comunista Brasileiro, a proposta, posteriormente acolhida na Constituição Federal de 1946, da liberdade religiosa e de culto no Brasil. Jorge Amado conhecia a discriminação religiosa como poucos, porque professou a Umbanda e o Candomblé, e frequentava os Terreiros em Salvador. Testemunhou a perseguição policial contra os locais sagrados e contra as lideranças dessas Religiões de matriz africana, tudo isso muito bem retratado, anos depois, em 1968, no romance “Tenda dos Milagres”.
A Constituição Federal de 1988 foi generosa com os Direitos Fundamentais e por consequência com a liberdade religiosa, violentada na Constituição do Império, de 1824, e vilipendiada pela perseguição política em alguns momentos da por vezes conturbada República brasileira.
Eis que mais de 70 anos após a Constituição de 1946 e mais de 30 anos de vigência da de 1988, o Brasil assistiu, no passado recente, um recrudescimento da intolerância religiosa (e cultural) que se imaginava sepultada pela história e pelo bom senso dos razoáveis. Situação que perdura até os dias que correm e que preocupa por sua agudeza e perigo.
O Brasil, ainda que tardiamente, soube equilibrar as diversas religiões em seu território, ainda que o equilíbrio não tenha sido perfeito, mas nem de longe se compara ao de outras nações engolfadas em conflitos religiosos largos, sangrentos e intermináveis.
É preciso um esforço conjunto para que o Brasil continue a ser o país da tolerância religiosa e cultural. Esse é um valor imensurável e um legado às gerações futuras, que transcende divergências ou interesses políticos momentâneos.
[1]. Esses puritanos fundaram Plymouth, um dos primeiros povoamentos ingleses na América - o primeiro é Jamestown, na Virgínia. Plymouth muitos anos depois daria origem ao Estado de Massachusetts. Sobre o processo de colonização, consultar: PHILBRICK, Nathaniel. Mayflower, Voyage, Community, War. New York: Penguin Books, 2007, p. 78/79.
[2]. À época os artigos eram grafados no formato “cardinal”.
João Carlos Souto é Professor de Direito Constitucional (UDF), Mestre e Doutor (suma cum laude) em Direito (CEUB), Procurador da Fazenda Nacional e Diretor da Escola Superior da Advocacia-Geral da União, autor de “Suprema Corte dos Estados Unidos - Principais Decisões” (Atlas, 4ª ed/2021).