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ARTIGO
Tolerância cultural e religiosa no resgate da nossa ancestralidade
Imagem: ASCOM/AGU
Criado com o objetivo de promover debates qualificados para a manutenção do equilíbrio institucional e fortalecimento democrático do país, o Observatório da Democracia encontra na quadra histórica brasileira um grande desafio. Frente a múltiplas possibilidades e junto a colegas dedicadas e dedicados, tenho a honra de compor o primeiro mandato bienal de conselheira, como uma das representantes da sociedade civil.
A convite do então ministro aposentado do Supremo Tribunal Federal Ricardo Lewandowski e do advogado-geral da União, Jorge Messias, fomos convocadas e convocados para produzir estudos que possam contribuir com a qualidade material do direito e do dever de informação. A nosso dispor, temos um centro de estudos destinado a produzir relatórios, seminários e publicações para diagnósticos e recomendações de soluções práticas, conforme o trabalho de cada conselheiro e conselheira.
Entre os objetivos do Observatório está o de dar visibilidade a certas datas importantes que resgatam a História de nosso país e auxiliam na construção da identidade nacional. No mês de janeiro, o Observatório tem como tema em seu calendário "Tolerância cultural e religiosa".
Vale ressaltar que se aproxima o Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa, o qual foi instituído por meio da Lei 11.635, de 27 de dezembro de 2007, que incluiu o 21 de janeiro no Calendário Cívico da União para comemoração oficial.
A data é uma homenagem à Ialorixá Gildásia dos Santos e Santos, a Mãe Gilda, que há 20 anos faleceu em decorrência de um ataque ao seu terreiro Ilê Axé Abassá de Ogum de Candomblé, localizado em Salvador, motivado por intolerância religiosa.
Fomentar a memória histórica é importante instrumento de justiça. Nas palavras de Walter Benjamin, “num mundo que a cada dia fica mais velho, não há como querer bancar a eterna criança que a cada manhã que o Senhor Deus nos proporciona quer começar um mundo novo[1].”
A historiografia tradicional incorpora a narrativa dominante que apaga da memória insurgências da população negra e das populações indígenas. Como nos ensina Sueli Carneiro, o epistemicídio é esse conjunto de aniquilamento histórico, tanto da memória, quanto da imposição de uma narrativa que faz com que a gente não conheça a história dos vencidos. Portanto, citando Benjamin novamente, é necessário contar essa narrativa a contrapelo, se não os vencedores nunca cessarão de vencer.
Nesse sentido, as religiões de uma forma geral cumprem um papel fundamental no resgate da nossa ancestralidade, com especial atenção para as religiões afro-brasileiras - demonizadas justamente por serem afro-brasileiras – nos ajudam a reconstruir memórias que nos trazem um outro olhar sobre nós mesmos.
Como nos alerta Sidnei Nogueira (2020), o Brasil não nasceu como uma democracia religiosa, pelo contrário. O colonialismo se utilizou da religião cristã como forma de dominação e catequização. Em termos legais, desde a Constituição de 1824, o catolicismo era a religião oficial do nosso país. Essa realidade apenas mudou com a instauração da República, em 1891, quando outra Constituição foi proposta com a pauta de que o Brasil se tornaria um Estado laico – em que pese a laicidade ser uma ideia ilusória, um mito tal qual a democracia racial (Nogueira, 2020)
A Constituição de 1891 consolidou no documento legal o mito da democracia religiosa, consistente, inclusive, em uma suposta separação entre a Igreja e o Estado. Com isso, assegurou, em termos formais, a liberdade de culto. Reconheceu, ainda, o direito de qualquer pessoa de querer ou não acreditar em uma religião, preservando seus traços culturais. Vale dizer, contudo, que essas proteções legais não alcançaram as religiões de matrizes africanas, as quais seguiram criminalizadas durante a maior parte do Século XX.
A Declaração Universal dos Direitos Humanos, publicada em 1948, pela Organização das Nações Unidas (ONU), reconhece a liberdade religiosa em nível internacional. Mais recentemente, alguns documentos têm fundamentado a liberdade de culto de religiões discriminadas. O artigo 5º da Constituição Federal de 1988 assegura a igualdade religiosa e reforça a laicidade do Estado brasileiro.
A Lei nº 9.459, de 13 de maio de 1997, em seu primeiro artigo prevê a punição para crimes motivados por discriminação de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional. Quem praticar, induzir ou incitar a discriminação por conta dos motivos citados pode ser punido com um a três anos de reclusão e aplicação de multa.
Posteriormente, foi sancionada a Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 lei de liberdade religiosa. Em 2003 a Lei nº 10.825 determinou a livre criação, organização e estruturação das igrejas, facilitando a formalização dos espaços de cultos para todas as religiões distintas.
Em 2009, a Lei nº 10.025, de 3 de setembro, instituiu o Dia Nacional da Marca para Jesus a ser comemorado, anualmente, no primeiro sábado subsequente aos 60 (sessenta) dias após o Domingo de Páscoa.
Finalmente, em 2023, a Lei 14.532, de 11 de janeiro de 2023 equipara injúria racial ao crime de racismo e protege a liberdade religiosa. Agora, o crime pode render de 2 a 5 anos de prisão.
Não obstante os avanços legislativos, penso ser importante discutir o tema sobre outra ótica. Enquanto nação, precisamos compreender que a maioria ainda passa por violências como as que a população negra passa.
A religião é uma das dimensões da cultura mais afetadas pelos efeitos nocivos (e fatais) das práticas cotidianas de discriminação e intolerância. Como afirma o babalorixá Sidnei Nogueira, no Brasil, além de intolerância religiosa, devemos falar em racismo religioso:
“O racismo religioso condena a origem, a existência, a relação entre uma crença e uma origem preta. O racismo não incide somente sobre pretos e pretas praticantes dessas religiões, mas sobre as origens da religião, sobre as práticas, sobre as crenças e sobre os rituais. Trata-se da alteridade condenada à não existência. Uma vez fora dos padrões hegemônicos, um conjunto de práticas culturais, valores civilizatórios e crenças não pode existir; ou pode, desde que a ideia de oposição semântica a uma cultura eleita como padrão, regular e normal seja reiteradamente fortalecida” (Nogueira, Sidnei, Intolerância Religiosa. Jandaíra/Feminismos Plurais, 2022, p. 89);.
No primeiro mês de funcionamento do Observatório da Democracia, debruçar-se sobre esse tema assume uma forma especial, pois a partir da antidiscriminação religiosa, valoriza-se a cultura, a história de quem luta pelo povo de axé, os saberes e as práticas ancestrais divinas da população negra, passos necessários para que a democracia brasileira seja, de fato, uma forma política experimentada por todos os grupos sociais.
[1] BENJAMIN, Walter. O capitalismo como religião. Organização Michael Löwy. Tradução Nélio Schneider, Renato Ribeiro Pompeu. 1ª ed. São Paulo: Boitempo, 2013.
Djamila Ribeiro é mestra em Filosofia Política pela Unifesp, professora convidada na New York University, coordenadora do projeto Feminismos Plurais, escritora e membra da Academia Paulista de Letras.