Notícias
ARTIGO
Responsabilidade democrática, uma tarefa coletiva e global
Com o rápido crescimento do populismo de direita transnacional, estamos ameaçados por todos os lados e, diante dos perigos que se aproximam, não basta apenas saber que a extrema direita tem uma rede poderosa e bem orquestrada de autocratas e fascistas em todo o mundo.
É hora de todas as nações democráticas do mundo globalizado se unirem, reagirem e aprenderem umas com as outras. Os países devem unir forças e compartilhar experiências, independentemente de suas particularidades, para preservar a ordem livre e democrática. Na Alemanha, também estamos vendo acontecimentos cada vez mais preocupantes contra a democracia. Pensar em liberdade, cidadania e responsabilidade coletiva (social) na construção de um país democrático deve estar vívido nas nossas mentes. Mas, ao mesmo tempo, devemos fazer nossa lição de casa para a conscientização democrática.
Partindo da definição de responsabilidade social como conjunto de ações e práticas do setor público, das empresas e cidadãos em prol do bem-estar, do desenvolvimento da sociedade e do meio ambiente, acho importante abrir essa discussão por uma nova chave. Para falarmos de responsabilidade social, temos que fazer um exercício de reflexão, pulando para a questão inicial de entendimento de sociedade e de dependência de um ser para com o outro e discutindo a priori sobre pacto e coesão social. Ou seja, sobre contrato social, sobre a compreensão das motivações humanas para se viver em sociedade e sobre os mecanismos de solidariedade que fazem com que os cidadãos de uma nação mantenham instituições em comum.
A grande cientista política Nicole Deitelhoff afirma que “não há um entendimento de coesão social que seja compartilhado por todos, mas sim ideias bastante diferentes sobre ele. No entanto, todos os entendimentos giram em torno do que é preciso para que os membros da sociedade se defendam uns aos outros de forma solidária, para além de todas as diferenças, e possam manter instituições que funcionem em prol de um bem comum. Com outras palavras, coesão não significa contemplar os interesses de todos em uma sociedade, que serão sempre diversos e muitas vezes antagônicos. É tarefa de todos buscar o equilíbrio nas diferentes visões de mundos e respeitar a necessidade e o direito que cada indivíduo tem de se ver representado e acolhido na organização social. Democracia não é um instrumento para oprimir minorias ou grupos sem poder. Pelo contrário, ela é ou deveria ser a prática da justiça, nas palavras do filósofo alemão Rainer Forst. Não há justiça sem a participação de todos. Enfrentar uma sociedade fragmentada exige, portanto, uma noção de compromisso e responsabilidade por parte de todos, a redundância é desejada. Apenas este pacto nos afastará do abismo.
Sendo assim, proponho abrirmos mais uma categoria nessa discussão: a da participação política e responsabilidade democrática. Entender a participação política como parte imprescindível da responsabilidade social de todos os grupos da sociedade na construção de uma sociedade justa e plural, é imperativo. Partindo dessa premissa, a responsabilidade social é ou deveria ser um dever e não uma prática voluntária; um dever inerente e indisponível da cidadania, independente de qual tarefa exercemos. Desta forma, a construção, a manutenção e a inovação da democracia seriam uma responsabilidade democrática coletiva, que deveria pautar todos as ações de todos os cidadãos em todos os setores. Isto não deixa de ser uma alegação republicana (e provocativa) e não perdeu, a meu ver, em atualidade.
Portanto, tanto para o setor público quanto para o setor privado, o empoderamento político da sociedade civil é imprescindível para a manutenção das estruturas e instituições e para a legitimação de suas ações. O entendimento sobre Estado de bem-estar (welfare state) e sobre sociedade não é algo estático e insuscetível de mudanças. Diante das transformações estruturais do mundo globalizado, o Estado está se tornando cada vez mais primus inter pares, convidando, incentivando a participação do setor privado e dos cidadãos na tomada de responsabilidade pelo bem comum. Com isso, a responsabilidade social do setor privado está saindo da esfera da filantropia e entrando numa responsabilidade política.
Mesmo em moda atualmente, a responsabilidade social é uma velha conhecida. No Brasil existem vários dispositivos constitucionais, como a função social da propriedade (já na Alemanha falamos que a propriedade obriga), o serviço militar obrigatório, a obrigatoriedade de voto no sistema eleitoral brasileiro – todos são formas de exercício de responsabilidade social. Estes e outros institutos e elementos estão presentes na tradição de Estado forte como no Brasil, na Alemanha e outros países na Europa ocidental, mas ante as inúmeras crises dos últimos anos não são mais suficientes. É interessante comparar essa distribuição de responsabilidade com países que tradicionalmente têm Estados fracos e sempre contaram com a participação voluntária, caritativa do setor privado, como por exemplo os Estados Unidos, onde sintomaticamente a malha social é fraquíssima. A geração ESG é a meu ver uma reação necessária a essas falácias e uma versão atualizada da responsabilidade social ante o bem-estar publico e o meio ambiente e a prova cabal de que ou reagimos ou perderemos como sociedade. Assumir a nossa responsabilidade pessoal ante o coletivo é mais atual e necessário do que nunca.
Importante nessa discussão sobre responsabilidade social é pensarmos também num terceiro setor: o setor cultural. A arte é um importante meio para entendermos casos multifacetados, nos quais é preciso uma análise mais ampla e crítica para que haja soluções mais justas e democráticas no plano político. A arte é livre e como tal uma autoridade crítica para questionarmos a verdade que acreditamos ser certa. Ela tem um papel essencial no registro da memória, na construção e no resgate de valores fundamentais, includentes e democráticos em uma sociedade. O filósofo Walter Benjamin, no seu ensaio “A obra de arte na época de sua reprodutividade técnica”, discorre exatamente sobre a função social e política da arte na sociedade moderna. Já o artista alemão Josef Beuys não insistia somente na responsabilidade social da arte. Ele ia mais longe e pleiteava que todo indivíduo não só poderia como teria a obrigação, com a sua criatividade, de participar na formação da plástica social. Ou seja, no seu entendimento, a responsabilidade social está interligada à participação política numa democracia.
Como exemplo de uma instituição cultural que prima por suas reponsabilidades sociais, vejamos o caso da Fundação Bienal de São Paulo, uma instituição cultural líder, sede de uma das maiores bienais internacionais de arte do mundo e de um arquivo referência na América Latina, com uma atuação que contribui para a cena artística no Brasil e no exterior. Com sua natureza educacional histórica, prima por um projeto educativo de ponta que atinge mais de 800.000 pessoas gratuitamente. Desde 2010, a Fundação Bienal de São Paulo tem implementado medidas para aumentar a sustentabilidade ambiental e reduzir sua pegada de carbono. No âmbito do desenvolvimento humano, a Fundação desenvolveu uma política de diversidade e inclusão, acompanhada pela adoção de um guia LGBTQIAP+ e a implementação de uma política de respeito à diversidade e enfrentamento do assédio. Outras ações de acessibilidade foram expandidas para tornar a Bienal um ambiente mais inclusivo e acessível. A Fundação Bienal anunciou que o título oficial da próxima mostra em 2025 será “Nem todo viandante anda estradas – Da humanidade como prática”. Seu curador geral, Prof. Dr. Bonaventure Soh Bejeng Ndikung, diretor do Haus der Kultur der Welt, Berlim, propõe uma exposição baseada na ideia de estuário, onde mundos se encontram criando um espaço de confluência e coexistência. A proposta da #36 Bienal é repensar a humanidade como verbo, uma prática viva, em um mundo que exige reimaginar as relações, as assimetrias e a escuta como base de convivência. É cada dia mais óbvio que precisamos uns dos outros: como cidadãos e como países democráticos.
Só podemos ganhar enquanto sociedade, se entendermos que as responsabilidades sociais e políticas são partes constitutivas do nosso pacto social e fundamentais para a coesão, a construção da cidadania e a moldagem de uma sociedade justa e igualitária. É isso, enfim, que pressupõe uma democracia plena: participação, responsabilidade individual e coletiva.
Bio
Paula Macedo Weiss tem mestrado e doutorado em direito pela Universidade de Tübingen, Alemanha. Em Frankfurt, é presidente da Fundação do Museu de Artes Aplicadas, membro do Conselho consultivo do Teatro Municipal e membro do Conselho fiscal do Leibnitz Institute for Peace and Conflict Research (Prif). Além disso, em Berlim, é vice-presidente do KW Institute for Contemporary Art e da Bienal de Berlim. No Brasil, é membro do International Advisory Board da Bienal de São Paulo. Juntamente com um grupo de pensadores e pesquisadores de várias áreas da sociedade civil, co-fundou a rede Paulskirche em Frankfurt, que tem como objetivo estimular a discussão sobre a democracia como um modo de vida e debater o futuro da ordem democrática na Alemanha e no mundo. É membro do Conselho consultivo do Pavilhão da Democracia, também em Frankfurt, um projeto itinerante que visa levar experiências democracias para o cotidiano dos moradores nos bairros da cidade. Paula Macedo Weiss é membro do conselho gestor do Observatório da Democracia da Advocacia-Geral da União, presidido pelo Ministro da Justiça Ricardo Lewandowski. É autora de três livros: Entre nós, Democracia em movimento e Áurea, e organizadora, na Alemanha, do livro de ensaios Demokratie gestalten. Vive desde 1998 em Frankfurt, é casada e tem quatro filhos.