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ARTIGO
A regulação do marketing digital como mecanismo de fortalecimento democrático
Imagem: Ascom/AGU
Criado com o objetivo de promover debates qualificados para a manutenção do equilíbrio institucional e fortalecimento democrático do país, o Observatório da Democracia encontra na quadra histórica brasileira um grande desafio. Frente a múltiplas possibilidades e junto a colegas dedicadas e dedicados, tenho a honra de compor o primeiro mandato bienal de conselheira, como uma das representantes da sociedade civil.
A convite do então ministro aposentado do Supremo Tribunal Federal Ricardo Lewandowski e do Advogado Geral da União Jorge Messias, fomos convocadas e convocados para produzir estudos que possam contribuir com a qualidade material do direito e do dever de informação. A nosso dispor, temos um centro de estudos destinado a produzir relatórios, seminários e publicações para diagnósticos e recomendações de soluções práticas, conforme o trabalho de cada conselheiro e conselheira.
São dois anos de mandato e gostaria de afirmar um compromisso nesse momento. Estou animada para ouvir – e, quem sabe, contribuir com - a agenda de pesquisa de colegas, uma vez que são tantos temas possíveis para estudo e levantamento de dados, que penso ser necessária a adoção de um foco. No caso, o mandato que exerço no Observatório se ocupará da discussão sobre a regulação do “marketing digital”, ou ainda “marketing de influência”.
Essa discussão assumiu uma centralidade no debate público pelo falecimento da jovem Jéssica Canedo, no interior de Minas Gerais. Aos 22 anos, Jéssica tirou sua própria vida após ser envolvida em uma fake news de um suposto relacionamento seu com o artista Whindersson Nunes. A fake news – ou, como dizíamos no passado, a mentira – foi veiculada em páginas de fofoca, que, por sua vez, seguem uma lógica própria de “influencer”.
Quando a família comunicou seu falecimento, diversas pessoas lamentaram o fato, a partir de uma convicção de que essa tragédia é mais uma evidência da necessidade de regulamentação das plataformas de redes sociais, as chamadas “big techs”, que exercem o domínio do mercado digital de relacionamento e auferem lucros exorbitantes em um ambiente atravessado por discursos discriminatórios a mulheres, negros e populações minorizadas em geral.
Um parêntese importante: em 2020, junto a organizações do movimento negro brasileiro, fui uma das signatárias de uma representação ao Ministério Público Federal para investigação da plataforma Twitter, pela exploração econômica do racismo e da misógina, tese formulada pelo professor doutor Adilson José Moreira, que é líder da equipe jurídica no caso. A representação se baseou em uma série de estudos, sobretudo o desenvolvido pelo pesquisador Luiz Valério Trindade, sociólogo brasileiro pesquisador da Universidade de Southampton, na Inglaterra. Trindade observou milhares de páginas nas redes sociais e identificou como as mulheres negras em ascensão social são as principais destinatárias de ataques nas redes. A ação, que requeria indenização à coletividade das mulheres negras e a adoção de procedimentos antidiscriminatórios na estrutura e fiscalização da empresa, segue sem solução satisfatória pelo representante federal da sociedade civil.
Fecho o parêntese para reafirmar a importância da regulação das empresas de mídia. É preciso discutir mecanismos algorítmicos para a promoção de um ambiente digital saudável. Para tanto, o tema está sendo debatido por especialistas reunidos em comissões públicas, na academia, na imprensa, entre outros setores. No Congresso, um projeto de lei sobre o tema avança com a atenção da sociedade e é salutar que o tema esteja amadurecendo para ser regulamentado à luz dos avanços tecnológicos dessas plataformas.
Penso que a sofisticação da prática do marketing de influência no país se aproveitaria de vários pontos da regulação das plataformas, como, por exemplo, na vedação de contratação de robôs para aumentar números de seguidores e inflar comentários. Vamos discutir essa e outros pontos de encontro a fundo nos artigos e encontros que promoveremos.
Mas em linhas introdutórias sobre as diferenças, uma regulação das plataformas de rede social não interferiria no caso de Jéssica Canedo, por exemplo, pois a mentira sobre a jovem surgiu em páginas de fofoca que não tomam cuidado com a informação, não seguindo regras do jornalismo, apesar de comunicarem a milhões de pessoas.
Como veremos, marketing de influência representa uma rede complexa que precisa ser discutida com cuidado. Há uma série de evidências que apontam como páginas de fofoca e “influencers” atuam em conjunto. Na prática, ambos são vinculados a uma mesma agência de marketing, que os reúne grande parte das vezes para promover um produto. Esse, por sua vez, pode ser um show de música, um programa de televisão, ou a melhora na reputação social de algum indivíduo. A atuação conjunta e coordenada acaba por viralizar o produto artificialmente, sem a informação pública de que este produto é patrocinado.
Trocando em miúdos:
i) páginas nas redes sociais comunicam fatos a milhões de pessoas, mas não se obrigam a regras do jornalismo
(ouvir o outro lado, checar fontes, separar comercial da redação, etc);
ii) entre tantas consequências desastrosas, a ação das páginas podem ter influenciado a morte de uma jovem de 22 anos;
iii) páginas e “influencers”, ao agirem em conjunto e de forma coordenada, tomam para si a agenda do debate público do dia,
influenciando o entendimento da pessoa consumidora que o assunto promovido é relevante e orgânico, levando-a a erro.
Além disso, a viralização artificial de um conteúdo pode ocorrer pelo aproveitamento de uma agenda política social, o que tem o potencial de esvaziar uma pauta, disseminar desinformação sobre temas caros a grupos sociais e intervir indevidamente em uma mobilização política orgânica em curso.
As consequências são inúmeras e vão desde uma questão de defesa do consumidor, quanto da insuficiência da autorregulação do marketing tal qual é feito atualmente no país, entre outras. Não há uma sistematização legal, nem uma instituição pública responsável por balizar essa prática, o que acaba por promover um ambiente sem regras.
As redes sociais exercem enorme influência no cotidiano das pessoas e no debate público em geral. A fim de melhorarmos os mecanismos democráticos, é preciso observar com atenção de que forma podemos construir, coletivamente, uma agenda política que eleve o padrão de qualidade prestado por esse setor, o que contribuirá para o desenvolvimento do país.