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ARTIGO
Bruxa Amarela¹
O Relatório da Agenda Transversal Mulheres no PPA 2024-2027, lançado nesta segunda-feira (4/3), deu início à agenda oficial do Governo Federal para a celebração do Dia Internacional da Mulher. Elaborado com o apoio da ONU Mulheres e do Ministério das Mulheres, a publicação apresenta, de forma simples e acessível, os compromissos com políticas públicas pensadas para reafirmar a transversalidade no planejamento das ações como fundamental para o desenvolvimento do país.[2]
Ainda recente, porém, a notícia da brasileira vítima de estupro coletivo no estado de Jharkand, durante uma viagem pela Índia, na noite de sexta-feira, 1º de março. São exemplos de uma realidade que insiste em subjugar mulheres e que devem servir para abrir amplos espaços de discussão sobre violência de gênero no Brasil e no mundo[3].
O fato alarma, mas não é novo. As mulheres, desde sempre, foram – continuam sendo – tratadas como despojos de guerra, como atestam os textos sagrados, a exemplo da afirmação constante em Deuteronômio 20:14: “Quanto às mulheres, crianças, animais e tudo o que houver na cidade, todos os seus despojos, tu os tomarás como presa”.
Por que no início do terceiro milênio as mulheres ainda são massivamente vitimadas ou, então, vilanizadas como bruxas?
Demanda, outrossim, um olhar atento para os excessos das culturas patriarcais e a capacidade de um debate democrático sob o ponto de vista feminista.
A data foi inicialmente celebrada nacionalmente, em maio de 1908, nos Estados Unidos, quando, aproximadamente, 1500 mulheres aderiram a uma manifestação por igualdade econômica e política no país. Uma história em especial marca a data e remonta a 25 de março de 1911, ocasião em que 125 mulheres morreram em um incêndio na “Triangle Shirtwaist Company", quando as portas estavam trancadas durante o expediente como forma de evitar motins e greves[4]. Ainda que várias as versões possíveis, esse é considerado um dos marcos para a definição do Dia das Mulheres.
No entanto, a data somente foi oficializada pela Organização das Nações Unidas, em 1975, quando foi declarado o Ano Internacional das Mulheres, como ação voltada ao combate às desigualdades e à discriminação de gênero em todo o mundo. Desde então, não foram poucos os momentos de reflexão e de luta, com inegáveis conquistas.
No Brasil, o primeiro partido político feminino foi criado em 1910. O Partido Republicano Feminino reivindicava o direito de voto e a emancipação feminina. Mas, as mulheres somente passaram a ter o direito a voto, no dia 24 de fevereiro de 1932, quando foi promulgado o Código Eleitoral brasileiro e criado o Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Trata-se de um direito que somente foi reconhecido em função da organização de movimentos feministas no início do século XX.
Em 1933, foi eleita a primeira deputada federal brasileira, Carlota Pereira de Queirós. No ano seguinte, em 1934, a professora Antonieta de Barros, filha de escrava liberta, foi eleita na Assembleia de Santa Catarina. Eis a primeira parlamentar negra da História do Brasil.[5]
No entanto, a bancada feminina no Senado Federal ainda é bem reduzida, sendo composta por 14 senadoras. As parlamentares mulheres ocupam apenas 5,5% dos cargos de lideranças partidárias na Câmara dos Deputados e 10,5% no Senado Federal.[6]
No Executivo Federal, considerando apenas os cargos de diretoria, secretariado, secretaria-executiva e ministros e ministras, as mulheres ocupavam 34% dos cargos no mês de abril de 2023, o que representou um aumento de participação em relação ao mesmo mês do primeiro ano da gestão passada – quando as mulheres eram 26% dos cargos de liderança. Também representa um aumento em relação ao último mês da gestão passada – quando era de 29% a participação feminina.[7]
Estudo da Talenses Group e do Insper, Panorama Mulheres 2023, revela que o cenário não é muito diferente no setor privado, na medida em que em 2023, as mulheres representavam 21% dos membros dos conselhos administrativos e 17% das CEO das empresas brasileiras[8].
Com a promulgação da Lei nº 4.212, de 1962, Estatuto da Mulher Casada, as mulheres casadas foram autorizadas a trabalhar sem que precisassem mais da autorização dos maridos. A partir de então, passaram a ter direito à herança e a chance de pedir a guarda dos filhos em casos de separação. Mais de uma década depois, em 1977, com a Lei nº 6.515, de 26 de dezembro, o divórcio foi permitido.
A lei nº 11.340, de 2006, representa inegável conquista das mulheres no combate à violência. Recebeu o nome de “Lei Maria da Penha”, em homenagem à mulher que ficou sem os movimentos das pernas após ser vítima de violência doméstica. Mas seria apenas em 2015 que a palavra feminicídio ganhou destaque no Brasil, quando foi aprovada a Lei Federal nº 13.104, que criminaliza o assassinato de mulheres cometido em razão do gênero.
Infelizmente, os dados divulgados no Anuário de Segurança Pública 2023 apontam para uma realidade preocupante. Os feminicídios cresceram 6,1% em 2022, as agressões em contexto de violência doméstica tiveram aumento de 2,9%, as ameaças cresceram 7,2%, e os acionamentos ao 190, número de emergência da Polícia Militar, chegaram a 899.485 ligações, o que significa uma média de 102 acionamentos por hora. Acresça-se que os registros de assédio sexual cresceram 49,7% em 2022 e importunação sexual teve crescimento de 37%.[9]
Nesse 8 de março, portanto, tão emblemático, importante, também, dar voz às tantas mulheres “invisíveis”, que são muitas vezes consideradas apenas como filhas, esposas, companheiras, em um papel secundário ou acessório. A proposta é outra e mais nobre: resgatar o valor da democracia a partir do olhar feminino e feminista, no sentido de provocar também a discussão sobre a invisibilidade social, com especial enfoque nas mulheres, que se ressentem duplamente, ora porque não se enquadram no papel tradicionalmente a elas reservado de esposa ou mãe, ora porque não têm seu valor devidamente reconhecido.
A invisibilidade de grupos politicamente minoritários está associada, não raro, a perda de direitos comuns que foram conquistados após trajetória tão árdua.
Vale destacar a contribuição de Silvia Federici, referência mundial do movimento feminista, sobre a classe de mulheres proletárias: “Em uma sociedade que estava cada vez mais monetizada, acabaram sendo forçadas à condição de pobreza crônica, à dependência econômica e à invisibilidade como trabalhadoras.”[10]
A democracia exige, portanto, constante vigilância, porque não é reto o caminho[11]. É “uma corda sobre um abismo, perigosa travessia, perigoso caminhar, perigoso olhar para trás, perigoso tremer e parar”[12].
Que nesse 8 de março, como pressagiou Rita Lee em música composta por Paulo Coelho e Raul Seixas, sejamos capazes de abrir a janela e ver “a bruxa cruzando a grande lua amarela e ir dormir quase em paz”.
[1] Música de Paulo Coelho e Raul Seixas no álbum Entradas e Bandeiras de Rita Lee (1976)
[2] Disponível em https://www.gov.br/gestao/pt-br/assuntos/noticias/2024/marco/dweck-reforca-transversalidade-da-pauta-de-genero-no-ppa#:~:text=O%20Relat%C3%B3rio%20Agenda%20Transversal%20de,Plano%20Plurianual%20de%202024%2D2027. Acesso em 07/03/2024.
[3] Disponível em https://g1.globo.com/mundo/noticia/2024/03/05/india-instituiu-pena-de-morte-para-estupradores-depois-que-estudante-foi-violentada-e-morta-em-2012.ghtml. Acesso em 05/03/2024.
[4] Sobre "8 de março: Dia Internacional da Mulher" em: https://brasilescola.uol.com.br/datas-comemorativas/dia-da-mulher.htm, acesso em 05/03/2024
[5] Disponível em https://futura.frm.org.br/conteudo/mobilizacao-social/noticia/conquistas-das-mulheres-ao-longo-da-historia. Acesso em 05/03/2024
[6] Conforme levantamento realizado pela CNN Brasil, disponível em https://www.cnnbrasil.com.br/politica/mulheres-ocupam-55-dos-cargos-de-liderancas-partidarias-na-camara-e-105-no-senado/. Acesso em 05/03/2024.
[7] Conforme dados do Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos. Disponível em https://www.gov.br/gestao/pt-br/assuntos/noticias/2023/maio/aumenta-a-participacao-de-mulheres-em-cargos-de-lideranca-no-governo. Acesso em 05/03/2024.
[8] CAPITANI, Lídia. Mulheres ocupam 17% dos cargos de presidente e 21% dos Conselhos Administrativos. Meio e mensagem. Disponível em https://www.meioemensagem.com.br/womentowatch/mulheres-ocupam-17-dos-cargos-de-presidente-e-21-dos-conselhos-administrativos. Acesso em 05/03/2024.
[9] AnuárioBrasileirodeSegurançaPública/FórumBrasileirodeSegurança Pública.–1(2006)-.–SãoPaulo:FBSP,2023. Disponível em chrome-extension://efaidnbmnnnibpcajpcglclefindmkaj/https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2023/07/anuario-2023.pdf. Acesso em 05/03/2024.
[10] FEDERICI, Silvia. Calibã e a bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva. Tradução Coletivo Sycorax. Editora Elefante, 2023, p. 146.
[11] Ezequiel 33
[12] NIETZSCHE, Friedrich. Assim falou Zaratustra. Tradução José Mendes de Souza. Montecristo editora, 2021, p. 38.